sexta-feira, setembro 18, 2009
A onda que olhou por nós
“Uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e para dissolver a noite.”
(Gaston Bachelard, A Água e os Sonhos)
Essa é a história de uma onda, de um homem quase destruído e de uma menina que o resgatou da escuridão. Uma menina parecida com a sua onda amada.
Percebi um pouco disso no meio da última session. Num dia de sol em São Paulo, estranhamente nossa praia estava fechada, fria, garoa insistente, água gelada que nos fazia tremer. Na primeira avistada do mar, previ uma arrebentação difícil, mas o brother foi mais otimista, “acho que não tá muito longe (o outside)”.
Entramos na água e ele mudou de ideia: “não vai dar pra passar”. Penso o mesmo, desanimado também pela temperatura pra pinguim e por um short john velho safado que deixa entrar água por tudo quanto é lado, especialmente pelo pescoço e sovaco. Por isso pego a primeira onda no inside mesmo e vou até quase o raso. Só que olho pra frente e o maluco tá remando convicto lá pra fora feito um condenado fugindo do presídio. Pensei: ou o cara enlouqueceu ou achou um canalzinho, vou tentar também. Toco então a remar feito um imbecil e furar as ondas, isso quando elas não me esmagavam e matavam metade do serviço. Mas o amigo seguia remando inabalável; avançava como se fugisse da ilha de Alcatraz. Não tinha outra opção senão ligar o turbo e remar feito um filho...
Eis que conseguimos e o que era uma confusão de liquidificador gigante nos primeiros reefs (tá, é tudo areia ali, mas usemos isso pra dizer que havia várias fases de ondas) virou um outside liso e com séries bem espaçadas; bem, nem todas...
A session de índio virou então uma daquelas clássicas. Paredes servidas com o dobro do tamanho da previsão (cada vez desconfio mais dessas câmeras, ou melhor, dos caras que tiram as fotos em praias abertas como a nossa). O drop tava difícil, as ondas precisavam ser abordadas sem nenhum rastro já de estouro, mas quando pegamos a manha, logo passeávamos como nos dias mais perfeitos. Perdão, logo coisa nenhuma: precisamos falar várias coisas pra nossa onda , antes dela, sempre manhosa, permitir que pegássemos em sua mão e viajássemos paredes afora.
Incrível como uma manhã cinza de inverno - fria, aparentemente sinistra e insurfável - virou brincadeira de verão. Virou uma queda gostosa (e vacas pirotécnicas também, loucos aéreos sem prancha hehe...) e, mais uma, inesquecível.
Não conseguia entender bem como essa session pôde rolar, ainda mais quando o irmão me disse que naquela hora (quando tentávamos varar a maçaroca gigante em busca do outside) ele só remou sem parar com convicção de fugitivo porque achou que era a única forma de não tomar uma série toda na cabeça.
No carro, já de volta pra Sampa, algumas pistas começaram a rolar quando saquei o telefonema que ele trocou com sua nova companheira: rápido, sucinto, algo simples como um tô chegando, moça, enquanto do outro lado ela deve ter falado só o necessário também. Percebi então que essa relação não é daquelas que enrola ou não para de se procurar para banais ligações. Percebi ainda que a calma do amigo pra enfrentar aquela rebentação cabulosa devia ter algo a ver com sua nova menina.
Devia ter algo a ver com o equilíbrio e serenidade que vi em sua menina no dia em que a conheci. Vi naqueles olhos, águas tranquilas. As águas que resgataram e levantaram meu amigo depois de um casamento frustrado e doloroso demais com uma moça tempestuosa como um rio escuro de corredeiras.
Aquelas águas. Mas o que pode existir de bom nessa calma para o surfe?
Tudo, pois o mar, o surfe e nossa onda local exigem equilíbrio e cuidado para abordá-los. Exigem paciência e respeito.
Então entendi: o que nos permitiu passar aquela montanheira líquida e encontrar as ondas naquele fundão distante foi a paz dessa menina.
A paz que ela transmitiu não sei como para seu namorado, mesmo a quilômetros de distância. Mesmo se estivesse dormindo em São Paulo. Dormindo, mas talvez sonhando...
Assim a moça dos olhos pacíficos e acolhedores criou um canal onde não havia e permitiu essa session surreal. E essa é a magia do surfe, quando feito com amor em uma onda amada: tratamos nossa menina com tanto afeto que ela nos sorri com as paredes mais longas e belas. E ela ainda nos conecta com as pessoas que amamos. Por isso recebemos essas energias e ajudas quase inexplicáveis.
Quase porque são explicáveis, sim, pois esse é o feitiço do surfe: conseguimos às vezes sintetizar uma vida toda em uma única session. Porque se o surfe não é tudo, ele pode conectar tudo.
Obrigado então, moça que mal conheço, por essas ondas de sonho que você mandou para o seu namorado que melhorou tanto depois de te conhecer. E durma e sonhe sempre quando estivermos ao mar!
E continue a inspirar meu amigo que, quando fala em você, parece cantar uma velha música do Brasilzão mais profundo: lá vai então o peão surfista em seu cavalo de fibra disparando campão azul afora, e cantando na sua viola pela moça serena que o salvou: “você é isso / uma nuvem calma / no céu de minha alma”.
PS – Enquanto eu acabava o texto, a Kiss, que eu escutava, colocou um dos maiores surfistas da vida entoando um dos hinos máximos do rock. Ele mesmo, o Big Z do rock de coração, Bono Vox, entoando "one man came in the name of love... What more in the name of love?
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Acho que emocionada seria pouco para descrever como estou agora. Poucas pessoas conseguem descrever e principalmente dar valor as outras, a não ser que tenham algum tipo de interesse.. e vejo em você uma pessoa muito pura que sabe enxergar o outro! Utilize sempre esse dom que você possui para o bem!!! Além disso, continue sendo esse amigo maravilhoso que eu só escuto o bem!!
ResponderExcluirForam poucas as vezes que alguém falou algo tão profundo e tão cheio de sentimentos sobre uma pessoa como agora... Vou confessar que eu tinha minhas dúvidas em relação a achar a pessoa perfeita, a cara metade, a alma gemea, enfim, mas hoje minhas dúvidas acabaram, vejo em seu amigo o meu futuro... o meu porto seguro.. a minha felicidade.
Fico realizada ao saber que pude ajudar seu amigo após um momento de tanta turbulência em sua vida, mas acredito que tudo o que aconteceu foi para ser aprendido uma lição. Pode ter certeza que por minha parte, ainda terão muitas sessions que serão transmitidas com muita paz, equilibrio e amor.
Andrea