terça-feira, setembro 29, 2009

O fim do passeio


Quantos ainda passeiam de verdade nas grandes cidades, a pé ou de bicicleta, pensando na vida ou conversando com um amigo ou cara metade?
Passear não é ir no shopping, ver lojas ou caminhar ultra-acelerado para manter a forma, o que transforma esse ato em obrigação ou malhação.
Passear não é colocar um headphone nos ouvidos e sair por aí sem prestar atenção ou pensar em nada.
Passear é permitir-se jogar tempo e conversa fora contra a ditadura opressora do time is money. É um ato de rebeldia contra o “tempo é dinheiro” com que seu chefe tira seu sangue e horas extras (ou você, que não respeita o horário de seus funcionários...)
Pena que passear, para muitos escravos ou carrascos do trabalho e lucro a qualquer preço com prazos cada vez mais “pra ontem”, é coisa de vagabundos.
Pena que dar uma volta com alguém importante é ato cada vez mais raro, a não ser nos esporádicos encontros de domingo em algum parque ultra-lotado de São Paulo nesses dias.
Pena que uma das maravilhas propiciadas pelo caminhar tranquilo cidade afora - a dedicação e atenção que damos ao outro - é soterrada pela pressa, trênsito, neurose e competitividade exacerbada. Assim a vida cotidiana não nos deixa ver que “as horas que não se podem dedicar ao passeio ou à amizade são horas que já não se dedicam ao amor próprio”, afirmou o escritor espanhol Rafael Argullo. Sim, não passear também joga contra nós porque deixamos de ficar um tempo essencial com o melhor de nós mesmos, que aflora muito enquanto passeamos.
O espanhol Argullo dá um belo exemplo, de uma habitual volta a pé por sua Barcelona:

“Esta manhã estava passeando com um amigo debaixo deste sol magnífico e estávamos a uma hora conversando, passeando tranquilamente, por uma das poucas ruas que isso é possível no centro de Barcelona, porque ainda não teve êxito comercial... Encontramos um terceiro amigo, que há muito tempo não nos via. Se aproximou de nós e disse: “Vocês ainda têm tempo de ir caminhando tranquilamente pela cidade". Eu lhe respondi que no momento em que não tem mais tempo para fazer isso, é melhor deixar de viver, porque já abandonou previamente a vida... Há algo nestes momentos de calma caminhada que é profundamente revolucionário: a dedicação, por exemplo, que damos à comida, quando tem tempo para saborear o alimento em vez de enguli-lo. Essa dedicação que significa a sensualidade e o erotismo contra o fast food da pornografía. A dedicação que significa a cultura frente à falsa religião dos bestsellers ... A atenção que significa um filme de estrutura clássica frente aos jogos artificiais dos efeitos especiais. A atenção que significa uma conversa com um amigo frente a uma espécie de comunicação com símbolos, puramente utilitária, em que degeneramos (MSN? Orkut, eu pergunto). Passear, mesmo sendo difícil, segue sendo algo reivindicável porque é a base de nossa capacidade de pensar e se expressar para os outros. Portanto, creio que o ritmo mais lento é profundamente revolucionário... Poderíamos exaltar a lentidão, a dedicação, a capacidade de atravessar a complexidade da vida, acossados como estamos por todos os lados pelo fast-food.”
Claro que passear é difícil demais em megalópolis mega-apinhadas de gente e carros como São Paulo, mas ainda é possível. Tenho procurado pessoas importantes para isso, na hora do almoço ou depois do fim do expediente, e passeamos pela Vida Madalena ou calçadas largas da Av. Paulista. Mas tenho saudade mesmo é da adolescência em que tinha tempo para visitar os amigos pedalando com minha bicicleta. E, sobretudo, das horas em que passava com o maior amigo pensando na vida, nos sonhos e nas nossas musas. Bom, mas a gente adapta isso, e há pouco tempo costumava fazer reuniões de pauta com meu editor na revista de surfe dando um longo rolê por ruas pacatas de um bairro ainda especial chamado Vila Mariana. A Vila Mariana que não tem a pose da Madalena. Andando, pensando, trocando ideias e sendo iluminados por belas moças ou senhores educados e simpáticos, planejamos várias resportagens. Incrível como naquelas ruas a arquitetura das matérias saía prontinha, nem precisávamos passar para o papel depois, é ou não é, Edu?
E claro, é preciso celebrar e abrir uma champanhe se você ainda passeia, de mãos dadas, com sua namorada ou esposa. De mãos dadas e sem a agressão do celular no bolso. Ou sua companheira não merece sua atenção total e exclusiva?
E então, alguém aí quer passear de verdade? Alguém aí quer fazer um saudável balanço da vida ou planos para o futuro? Chega mais que sei rotas perfeitas para isso, e temperadas ainda com paradinhas em cafés e padarias sem frescura e pagação. Vai passear, moçada!
PS – Não falei dos passeios com os cães, não dá pra pensar muito com o que eles aprontam, né, mas a loucura que eles têm para dar uma volta explica um pouco a importância de passear para nós também.

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