Ninguém se despede
de um grande amor lentamente. Só o atleta que chega naquilo que os antigos
chamavam de “o ocaso de uma carreira”.
Nenhum grande amor termina
de forma tão dolorosa como a do grande ídolo que vai partindo, porque sente que
o fim está chegando.
Sente a dor em cada
músculo; em cada pé, joelho, ombro e braço que se machuca e não se recupera
mais facilmente como antes. Agora a dor demora a partir e o ídolo, grande que
é, apaixonado que é, não vai esperar a dor ceder.
Porque a dor de não jogar será maior perto do fim. Rasgará a alma de quem está cruzando as últimas curvas.
E pesa ainda a
responsabilidade de ser amado. O grande ídolo não quer se ausentar em seus
últimos momentos, em seus últimos jogos, em seu últimos campeonatos.
Não quer magoar seu
grande amor: o distintivo que bate no meio do peito dos que torcem por ele. Um
distintivo que é, para o ídolo de verdade, a mesma coisa que o torcedor que o
ama com respeito e gratidão.
Por isso é tão duro
quando o grande ídolo escuta o burburinho sinistro de algumas críticas que vêm
de onde ele menos esperava: daqueles que amava. Daqueles que o amavam.
Nada é mais belo
que o amor. Mas nada dói mais que o amor que nos abandona, que não nos ama
mais.
Nada é mais duro que
jogar-viver machucado e falhar. Porque o ser humano perde o respeito ou desama
com facilidade. Não importa a muitos que alguém está lá, no sacrifício,
jogando-defendendo por eles. Importa que esse alguém falhou.
Não foi no jogo
contra o Strongest, na Bolívia, que Rogério falhou pela primeira vez em um jogo
decisivo. Houve outras falhas antes, raríssimas, mas houve. Não foi a primeira
vez que ele foi criticado por quem antes só o venerava. O caso é que a crítica,
quando perto do fim, costuma ser ainda mais dura, porque vem acompanhada de uma
cobrança cruel: “Está na hora de se aposentar”.
Os críticos não
ligaram se ele se machucara feio contra o Corinthians.
Os críticos não ligaram
para a sua história, tão grandiosa que parece lenda.
Ele ligou. Ele
sentiu o baque.
Pior: temeu
encerrar a carreira de forma deprimente, eliminado em sua própria casa do
campeonato que sempre foi sua paixão eterna como se fosse aquele mesmo garoto
sedento de glórias que esperava uma chance para substituir outro grande
goleiro, Zétti.
Ocorre que a vida
dos grandes personagens costuma não se encerrar de forma melancólica. Ocorre que há
algo lá em cima, para os que creem; ou algo que vem do coração energético do
mundo, para os céticos, que não aceita que histórias maravilhosas como a deste
homem do número 01 às costas acabe desta forma, de repente, como uma bomba que
dá chabu ou uma paixão que não se torna amor.
Ocorre que as
forças ocultas, mas presentes da humanidade, tecem a vida dos grandes como uma história fantástica,
um conto de fadas, uma lenda.
Ocorre que mesmo
quando o grande ídolo estava rodeado de um grupo então apático, derrotado,
condenado, eis que a sua alma e poder contagiou seus companheiros, e o amor dos
milhares que amavam de verdade o seu distintivo também fez a sua parte.
Ocorre que um atacante
sem muitos recursos técnicos, mas com uma garra e valentia monumental,
disputava cada bola como se sua vida dependesse dela.
Ocorre que junto desse
possuído corria um baixinho que enfrentou todas as privações e dores que significa
ser uma criança pobre no Nordeste miserável.
Ocorre que o
baixinho que venceu seu destino, Osvaldo, enfiou um passe de mágica para
Aloísio.
Ocorre que o
atacante sempre possuído como seu apelido, Boi Bandido, matou a bola no peito e
preparou-se para marcar, mas foi derrubado. Pênalti.
Ocorre que ele, o
homem que se despede lentamente de seu grande amor, começou a caminhar
lentamente da sua meta, do seu lar, do seu amor, da sua fortaleza, até a muralha
inimiga; a muralha que jamais teve medo de enfrentar porque um dia,
revolucionário, decidiu que não apenas evitaria gols, mas os marcaria.
Ocorre que um
estádio inteiro, em seu Morumbi, e outros estádios inteiros, no coração de todo
são-paulino que não pôde ir ao jogo, cantaram, gritaram e bradaram o seu nome.
Ocorre que enquanto
ele se ajeitava para cobrar o pênalti que só ele poderia cobrar, porque só ele
teria a coragem de cobrar, o mundo inteiro de sãopaulinos ficou com os olhos
cheios e subitamente sem voz ou respiração.
Ocorre que alguns
de nós, sim, temíamos pela injustiça dele falhar e ser considerado o
responsável por uma despedida que não seria apenas de nosso time, mas dele
mesmo.
Ocorre que ele
jamais duvidou.
Por isso ele
caminhou de novo lentamente para a bola, talvez porque só lentamente que ele e
nós poderíamos relembrar tudo o que ele já fez, todas as defesas, todos os
gols, todos os títulos, todo o filme ou na verdade, série de filmes que ele
viveu em sua carreira tão longa que parecia infinita, ainda parece.
Por isso ele de
novo cerrou todos os músculos de sua face antes de, quase parado, bater na bola
com a decisão, calma e querer do homem que deseja e precisa falar algo para sua
amada pela última vez.
Por isso ele marcou
de novo.
Porque um grande
amor, como o grito dos radialistas,
Rogériooooooooooooooooooooo!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
... não termina
nunca.