Fugir é sempre
uma decisão arriscada, mas pode ser essencial para nos encontramos com a nossa
essência, verdades e sonhos mais profundos. Sonhos que só viram realidade se
botarmos o pé na estrada. Essência e verdades que muitas vezes só redescobrimos
quando confrontados com as surpresas da estrada, com os novos lugares, pessoas
e experiências que surgem em nosso caminho. Dois pequenos grandes filmes
mergulham nesse tema com beleza e poesia, o brasileiro A Busca e o francês Sejammuito bem-vindos.
A Busca narra a fuga de Pedro, um adolescente
incompreendido pelo pai autoritário, Theo, e não motivado por uma mãe
aparentemente fraca e triste. Foge também do tormento dos pais separados que
ainda se amam mas só brigam e não conseguem viver juntos, muito menos se
respeitar. O menino foge também em busca do avô ausente, que não conhece, mas é
artista como ele. Sim, Pedro desenha demais, mas tanto o pai sempre cobrando
seriedade ou a mãe sempre tristonha não percebem o dom e paixão do filho.
O início tenso
e pesado da família em cacos logo ganha o brilho, surpresas e descobertas da
estrada. É nela, em estreitas estradinhas e terra ou nas águas de uma represa;
entre a cidade, as montanhas e a praia que o menino desaparece e o pai sai em
seu encalço.
Aqui A Busca foge do habitual drama dessa
temática do pai desesperado atrás do filho que sumiu. Em vez de violência
(filmes do tipo mostram quase sempre crianças ou adolescentes raptadas e
sofrendo todo tipo de privação e tortura psicológica) e drama policial, o diretor
do filme, Luciano Moura, narra a história de um pai, Theo, se reencontrando com
o jovem que foi um dia, e conhecendo melhor o filho pelos rastros que o garoto
deixa na estrada.
Um trecho em
especial faz o pai superar seu jeito metódico, conservador, insosso e frio -
daqueles que pedem água num jantar com a mulher amada. Ocorre quando Theo
cruza com um grupo de uma juventude bela e livre em um festival de música meio
hippie na aldeia-serra de nome “Mimoso”. Do inicial estranhamento da enorme
liberdade das jovens, logo Theo se encanta com meninas tão doces e naturais, e relaciona-se
com elas como um paizão papo aberto e ombro amigo. A beleza do encontro é
mostrar apenas um adulto experiente e meninas ricas de espírito compartilhando
instantes fundamentais de pausa na vida comum e cotidiana, quase sempre
sufocante. E é através das meninas, que estiveram com seu filho em fuga, que ele
percebe outros sentimentos e paixões do seu garoto.
É também junto
das meninas, sem julgá-las ou condená-las por estarem vivendo uma utopia hippie
passageira, que Theo aprende o que é ser um pai de verdade: aberto e disposto
ao diálogo e a ouvir as jovens, ele descobre muito do que deve se passar no
coração e anseios do filho. Descobre também, ao juntar as pistas e pegadas do
filho, uma força que desconhecia no garoto, que se vira sozinho para dormir, se
alimentar e seguir em frente na sua longa e árdua jornada em busca do avô.
Após a poesia
de Mimoso, um novo homem-pai surge e a viagem-saga torna-se ainda mais delicada
e profunda, e sentimos que, diferente de tantos filmes e seriados mórbidos e
sedentos de sangue, a história caminha para um final ainda redentor. Porque a
linha-sentimento condutor de A Busca
é a esperança e fé nos outros, a amizade, amor familiar e amadurecimento. Bem
diferente da expectativa e comentários idiotas de uma família abastada
– pai saradão, mãe perua e dois garotos “blasés” - que cruzei na
saída do filme. A sequência de comentários deles é um triste sinal da
insensibilidade, falta de imaginação e dificuldade para decodificar símbolos.
Talvez porque essa família representa boa parte de nossa sociedade que adora
reality shows e ficções violentas e/ou trancar-se em seu mundinho de luxo, prazeres
tecnológicos, vaidades e medo: “Até parece que um pai ia sair assim, procurando
o filho em vez de chamar a polícia”; “Achei que o menino ia ser sequestrado”;
“Nenhum adolescente foge assim, ainda mais a cavalo”; “o filme é chato”.
O festival de
baboseiras de uma família que esperava um filmeco de ação e sangue não parava.
Chato é perceber que pessoas com tantas condições financeiras serem tão
ignorantes e incapazes de perceber as lições e belezas deste filme.
A outra
produção, o francês Sejam muito
bem-vindos, mostra o encontro, em plena fuga de ambos, de Taillandier, um
pintor de sucesso que não têm mais motivação para fazer sua arte e viver, e Marylou,
uma adolescente que sofre com a violência do padrasto e a submissão da mãe a
ele.
O filme é outro
que aborda temas pesados, como a depressão do artista sessentão, e a violência
doméstica, pedofilia (essas duas últimas são apenas sugeridas, não mostradas)
sem apelar para o recurso fácil e torpe de chocar o público. Pelo contrário, o
inusual encontro em plena rua do pintor com a menina vai se tornar uma sucessão
de trocas de experiências e afetos poderá salvar a dupla. E será através do
senhor desconhecido, mas um artista adormecido e homem bom, e da menina rebelde
sofrida, mas ainda com esperanças de reencontrar a paz familiar, que ambos
serão tocados por um raro mas poderoso amor entre estranhos. Um amor de pai e
filha de vida que a realidade colocou no caminho do outro.
Todo aquele que
já recebeu o presente de alguém especial que a vida colocou em seu caminho em
um lugar e momento inesperado, para lhe ensinar ou dar forças, saboreará como
uma gostosa refeição caseira para a alma esse filme. Conduzido com a mesma fonte
delicada e poética de A Busca, o francês Sejam
muito bem-vindos nos lembra ainda que, para nos reerguer, precisamos estar
abertos às mãos que tentarão nos amparar. Basta que
as aceitemos.
Todavia, como o
pintor que explica à jovem que um artista não precisa ver uma modelo para
desenhar suas formas, “basta imaginá-las”, é preciso às vezes fechar os olhos e
abrir o coração para que encontremos forças, inspiração e lucidez dentro de nós
mesmos. É isso também que o mestre Taillandier ensina à jovem Marylou, depois
dela lhe ensinar que ele não podia “ir embora” (o pintor depressivo fugiu de
sua casa e família com um rifle no porta-malas do carro), pois ela estava
aprendendo muito com ele. Aprendendo sobre arte e, valorizando o afeto,
proteção e interesse do senhor para que ela fosse feliz de novo.
O outro lado é
o que Marylou dá ao velho Taillandier e aqui o cineasta francês Jean Becker nos
oferece a mesma nobreza de espírito do filme brasileiro: bela e sedutora
fisicamente, e desconhecendo isso como a jovem desencanada que é, a personagem
da menina poderia suscitar sentimentos torpes e doentios no velho pintor. O que
prevalece, porém, é algo bom, captado com perfeição pelo crítico Orlando
Margarido: “(Marylou) mal tem ideia de sua atração, do belo corpo que se impõe.
Não será por essa via da sedução, a mais óbvia e apenas implícita com sutileza
pelo filme, que Taillandier se deixará envolver. Marylou é sua musa inspiradora
e como tal representa a beleza ainda da pureza possível.”
Há sempre
várias descobertas na estrada. Sobretudo quando a viagem e a fuga são
tentativas de nos (re)encontrar com o que há de mais genuíno e bonito em nós
mesmos.
*Magníficas as atuações de Wagner Moura
(nos faz crer em cada aflição, alegria e descoberta do pai que aprende a ser
pai) e, especialmente, de Lima Duarte (o pai ausente e o avô terno e
arrependido que luta por uma última chance de voltar à sua família) em A Busca. Da mesma dimensão é a
viagem tão triste ou alegre, sofrida ou apaixonada dos atores franceses Patrick
Chesnais, monstro que revela muito em um simples olhar, e a jovem revelação Jeanne
Lambert, de beleza morena tão selvagem quanto doce.
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