sexta-feira, abril 05, 2013

Fugir para se encontrar



Fugir é sempre uma decisão arriscada, mas pode ser essencial para nos encontramos com a nossa essência, verdades e sonhos mais profundos. Sonhos que só viram realidade se botarmos o pé na estrada. Essência e verdades que muitas vezes só redescobrimos quando confrontados com as surpresas da estrada, com os novos lugares, pessoas e experiências que surgem em nosso caminho. Dois pequenos grandes filmes mergulham nesse tema com beleza e poesia, o brasileiro A Busca e o francês Sejammuito bem-vindos.

A Busca narra a fuga de Pedro, um adolescente incompreendido pelo pai autoritário, Theo, e não motivado por uma mãe aparentemente fraca e triste. Foge também do tormento dos pais separados que ainda se amam mas só brigam e não conseguem viver juntos, muito menos se respeitar. O menino foge também em busca do avô ausente, que não conhece, mas é artista como ele. Sim, Pedro desenha demais, mas tanto o pai sempre cobrando seriedade ou a mãe sempre tristonha não percebem o dom e paixão do filho.

O início tenso e pesado da família em cacos logo ganha o brilho, surpresas e descobertas da estrada. É nela, em estreitas estradinhas e terra ou nas águas de uma represa; entre a cidade, as montanhas e a praia que o menino desaparece e o pai sai em seu encalço.

Aqui A Busca foge do habitual drama dessa temática do pai desesperado atrás do filho que sumiu. Em vez de violência (filmes do tipo mostram quase sempre crianças ou adolescentes raptadas e sofrendo todo tipo de privação e tortura psicológica) e drama policial, o diretor do filme, Luciano Moura, narra a história de um pai, Theo, se reencontrando com o jovem que foi um dia, e conhecendo melhor o filho pelos rastros que o garoto deixa na estrada.

Um trecho em especial faz o pai superar seu jeito metódico, conservador, insosso e frio - daqueles que pedem água num jantar com a mulher amada. Ocorre quando Theo cruza com um grupo de uma juventude bela e livre em um festival de música meio hippie na aldeia-serra de nome “Mimoso”. Do inicial estranhamento da enorme liberdade das jovens, logo Theo se encanta com meninas tão doces e naturais, e relaciona-se com elas como um paizão papo aberto e ombro amigo. A beleza do encontro é mostrar apenas um adulto experiente e meninas ricas de espírito compartilhando instantes fundamentais de pausa na vida comum e cotidiana, quase sempre sufocante. E é através das meninas, que estiveram com seu filho em fuga, que ele percebe outros sentimentos e paixões do seu garoto.

É também junto das meninas, sem julgá-las ou condená-las por estarem vivendo uma utopia hippie passageira, que Theo aprende o que é ser um pai de verdade: aberto e disposto ao diálogo e a ouvir as jovens, ele descobre muito do que deve se passar no coração e anseios do filho. Descobre também, ao juntar as pistas e pegadas do filho, uma força que desconhecia no garoto, que se vira sozinho para dormir, se alimentar e seguir em frente na sua longa e árdua jornada em busca do avô.

Após a poesia de Mimoso, um novo homem-pai surge e a viagem-saga torna-se ainda mais delicada e profunda, e sentimos que, diferente de tantos filmes e seriados mórbidos e sedentos de sangue, a história caminha para um final ainda redentor. Porque a linha-sentimento condutor de A Busca é a esperança e fé nos outros, a amizade, amor familiar e amadurecimento. Bem diferente da expectativa e comentários idiotas de uma família abastada  – pai saradão, mãe perua e dois garotos “blasés”  - que cruzei na saída do filme. A sequência de comentários deles é um triste sinal da insensibilidade, falta de imaginação e dificuldade para decodificar símbolos. Talvez porque essa família representa boa parte de nossa sociedade que adora reality shows e ficções violentas e/ou trancar-se em seu mundinho de luxo, prazeres tecnológicos, vaidades e medo: “Até parece que um pai ia sair assim, procurando o filho em vez de chamar a polícia”; “Achei que o menino ia ser sequestrado”; “Nenhum adolescente foge assim, ainda mais a cavalo”; “o filme é chato”.

O festival de baboseiras de uma família que esperava um filmeco de ação e sangue não parava. Chato é perceber que pessoas com tantas condições financeiras serem tão ignorantes e incapazes de perceber as lições e belezas deste filme.

A outra produção, o francês Sejam muito bem-vindos, mostra o encontro, em plena fuga de ambos, de Taillandier, um pintor de sucesso que não têm mais motivação para fazer sua arte e viver, e Marylou, uma adolescente que sofre com a violência do padrasto e a submissão da mãe a ele.

O filme é outro que aborda temas pesados, como a depressão do artista sessentão, e a violência doméstica, pedofilia (essas duas últimas são apenas sugeridas, não mostradas) sem apelar para o recurso fácil e torpe de chocar o público. Pelo contrário, o inusual encontro em plena rua do pintor com a menina vai se tornar uma sucessão de trocas de experiências e afetos poderá salvar a dupla. E será através do senhor desconhecido, mas um artista adormecido e homem bom, e da menina rebelde sofrida, mas ainda com esperanças de reencontrar a paz familiar, que ambos serão tocados por um raro mas poderoso amor entre estranhos. Um amor de pai e filha de vida que a realidade colocou no caminho do outro.

Todo aquele que já recebeu o presente de alguém especial que a vida colocou em seu caminho em um lugar e momento inesperado, para lhe ensinar ou dar forças, saboreará como uma gostosa refeição caseira para a alma esse filme. Conduzido com a mesma fonte delicada e poética de A Busca, o francês Sejam muito bem-vindos nos lembra ainda que, para nos reerguer, precisamos estar abertos às mãos que tentarão nos amparar. Basta que as aceitemos.

Todavia, como o pintor que explica à jovem que um artista não precisa ver uma modelo para desenhar suas formas, “basta imaginá-las”, é preciso às vezes fechar os olhos e abrir o coração para que encontremos forças, inspiração e lucidez dentro de nós mesmos. É isso também que o mestre Taillandier ensina à jovem Marylou, depois dela lhe ensinar que ele não podia “ir embora” (o pintor depressivo fugiu de sua casa e família com um rifle no porta-malas do carro), pois ela estava aprendendo muito com ele. Aprendendo sobre arte e, valorizando o afeto, proteção e interesse do senhor para que ela fosse feliz de novo.

O outro lado é o que Marylou dá ao velho Taillandier e aqui o cineasta francês Jean Becker nos oferece a mesma nobreza de espírito do filme brasileiro: bela e sedutora fisicamente, e desconhecendo isso como a jovem desencanada que é, a personagem da menina poderia suscitar sentimentos torpes e doentios no velho pintor. O que prevalece, porém, é algo bom, captado com perfeição pelo crítico Orlando Margarido: “(Marylou) mal tem ideia de sua atração, do belo corpo que se impõe. Não será por essa via da sedução, a mais óbvia e apenas implícita com sutileza pelo filme, que Taillandier se deixará envolver. Marylou é sua musa inspiradora e como tal representa a beleza ainda da pureza possível.”  

Há sempre várias descobertas na estrada. Sobretudo quando a viagem e a fuga são tentativas de nos (re)encontrar com o que há de mais genuíno e bonito em nós mesmos.

*Magníficas as atuações de Wagner Moura (nos faz crer em cada aflição, alegria e descoberta do pai que aprende a ser pai) e, especialmente, de Lima Duarte (o pai ausente e o avô terno e arrependido que luta por uma última chance de voltar à sua  família) em A Busca. Da mesma dimensão é a viagem tão triste ou alegre, sofrida ou apaixonada dos atores franceses Patrick Chesnais, monstro que revela muito em um simples olhar, e a jovem revelação Jeanne Lambert, de beleza morena tão selvagem quanto doce.

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