segunda-feira, junho 18, 2012

20 anos do sonho da América


Ainda hoje aquele pôster - amassado, rasgado e envelhecido pelo tempo - está pendurado no velho quarto de um garoto que virou quarentão mas não o esqueceu. Nele vemos um raro caso de guerreiro elegante. A camisa está manchada de terra, na verdade enobrecida da terra e do chão do qual ele não tinha medo. O chão no qual ele se atirava numa jogada típica, o carrinho que dava para recuperar a bola nas laterais do campo, lugares que ele sabia que resultariam em contra-ataques mortais. Este era o lado guerreiro, de quem dividia sem medo e enfrentava no peito os mais duros marcadores rivais, em qualquer pedaço do campo. Havia também a elegância, o porte altivo, corpo e mente ereta, de quem jogava o fino e com inteligência, com toques refinados, passes precisos e solidários, chutes tão violentos quanto precisos, e cabeçadas que eram tiros de canhão. Até hoje, 20 anos depois, Raí segue dependurado na parede da velha casa dos meus pais e não cai. Porque aquele São Paulo era derrubador, brigador, vencedor. Conquistador da primeira Libertadores tricolor. A até hoje talvez mais bela taça que conquistamos, por seu significado e dificuldade.
    Eram 105 mil são-paulinos no Morumbi lotado e duvido desse número, pois passei o jogo todo espremido em um dos últimos lances da arquibancada, o que fez muito jornalista falar em pelo menos 120 mil torcedores naquela noite. A mãe de todas as noites gloriosas do São Paulo de Raí, outros fantásticos jogadores e, claro, mestre Telê. Resgatando hoje a escalação, o esquadrão é monumental: O seguríssimo e heroico Zétti (e ainda um ser humano sensacional), o multihomem em campo, Cafu, o clássico e raçudo Antonio Carlos, a muralha Ronaldão e o vigoroso mas inconstante Ivan (não naquela final), típico caso de jogador que só brilhava e arrebentava sob o comando e orientação de mestre Telê. No meio-campo, o cão de guarda mas bom no primeiro ou segundo passe (diferente dos meros brucutus de hoje) e uma das almas do time, o sempre enlouquecidamente mais que raçudo, Pintado. Ao seu lado na proteção da zaga e início dos contra-ataques infernais tricolores, o clássico e nobre zagueiro central, deslocado por Telê, Adílson, quase um líbero, pois Telê era, sim, bom em tática também, como não acreditavam seus críticos. Um pouco mais à frente, capitão, líder e matador Raí comandando as ações ofensivas com o homem de papel, fluído, quase etéreo, mas ilusionista, rapidíssimo e inteligente nos toques rápidos, além de goleador, Palhinha. Já no ataque, mas volta e meia recuando um pouco para armarem tabelinhas sensacionais, o genial Müller, tão flecha quanto arco de boa parte dos gols tricolores. Junto dele, do outro lado, o veloz e não tão inteligente Elivélton, mas hábil e de chute forte. E se Müller, coisa rara, não estava bem, houve o amalucado mas habilidoso e supersônico Macedo no banco para entrar e sofrer o pênalti que nos daria a vitória necessária para levarmos o jogo aos pênaltis.
Pênalti que Raí encarou com a frieza de valente dos valentes, caixa, 1 a 0 igual ao placar da derrota na Argentina contra esse lutador Newell´s Old Boys comandando por um certo Marcelo Bielsa...
Veio então a decisão por pênaltis e aí brilhou não só o heroísmo e técnica de Zétti mas um dos diferenciais daquele São Paulo de outros tempos: o trabalho bem feito nos bastidores e preparação da equipe. Zétti sabia para onde pular porque seu treinador, e observador de todos os adversários do time naquela Libertadores, já tinha mapeado a cobrança dos jogadores do Newell´s. Falo de Valdir de  Moraes, ele mesmo, aquele que depois ainda formaria um certo Marcos no rival alviverde. E ainda havia na comissão técnica tricolor Moraci Santana e Turíbio de Barros, comandantes de toda a preparação física e fisiológica dos jogadores naquela Libertadores.
Falta ainda o Mestre Telê Santana. E o que eu posso dizer de um treinador que montou um time sensacional desse, como mostra a escalação? O que dizer de um treinador que baseou seu time em pegada, sim (Ronaldão e Pintado na chefia do jogo duro mas na bola), mas também nas maravilhosas tabelinhas entre Raí, Palhinha, Müller e Elivélton? O que dizer de um treinador que morava no CT do São Paulo e investigava todos os dias os gramados para quem nenhum buraco machucasse seus atletas ou prejudicasse o toque de bola conduzido por Raí e cia? O que dizer de um mestre sem frescuras e vaidades, que só se importava em treinar e treinar, bem diferente dos treinadores pop stars que infestariam o futebol brasileiro e mundial em pouco tempo? O que dizer de um perfeccionista e raro treinador formador de jogadores completos, que exigia a repetição dos fundamentos básicos do passe, cruzamento, tabela e chutes? O que dizer de um mestre amado para sempre, até hoje cantado com saudade no seu templo e imensa sala de aula do Morumbi?
Bonita ontem (antes da pelada de mau gosto contra o Atlético...), a homenagem aos homens e heróis que começaram duas décadas atrás o sonho de nos tornarmos o melhor time do mundo. Só não concordei com os jogadores de hoje estamparem em suas camisas os nomes dos nossos heróis.  
Nunca vi, por exemplo, o Maestro Raí maltratar a bola, não dar o sangue ou reclamar de uma marcação do árbitro... Nunca vi o maior jogador de nossa história nos deixar na mão.
Raí só nos deixava nas nuvens. No topo do mundo.

* Textinho do Maestro sobre a Libertadores de 1992 aqui