quinta-feira, abril 28, 2011

O coração da verdadeira América

Existem pessoas que basta vermos a primeira vez que já suspeitamos que estamos diante de alguém raro, destinado a fazer algo especial. Algumas conversas e a suspeita estava confirmada: Marta Elena Sanchez, uma argentina de coração e consciência, e praticamente também uma brasileira - na simpatia pura e calor humano – é uma daquelas pessoas que a maioria das pessoas costuma “conhecer” apenas na pele de um personagem do cinema.
Marta é quase um sinônimo de juventude, não muito a de hoje, mas a daquela que realmente sonhava e lutava por um mundo melhor. Ela é uma canção de protesto, sentimos o vento soprar mais forte que nunca quando ela fala; na verdade, brada, por dentro grita com um coração e humanidade do tamanho da verdadeira América, a Latina.
Marta condena os poderosos egoístas, os que querem perpetuar-se no poder mantendo seus privilégios e mantendo o povo enfraquecido na pobreza. 
Marta está sempre, e tão claramente, do lado da procura da verdade. Por isso ela busca esta verdade na fonte: lá fora, nas ruas e nas mesas dos pequenos bares e cafeterias; e lá dentro, nas conversas amigas em sua cozinha ou na poderosa consciência política que herdou de seus pais.
Por isso que a palavra mais importante para ela é humildade. A humildade de querer conhecer as pessoas, os povos e suas culturas e história.
A humildade, essencial mas tão esquecida hoje, de aprender com os outros, com o diferente.
Sim, Marta é mesmo uma canção, Bob Dylan deve ter imaginado uma moça como ela, buscando um mundo melhor, ao compor Blowin´the Wind.
How many roads must a man walk down,
Before you call him a man?
Quantas estradas um homem deve percorrer
Antes que possam chamá-lo de um homem?
Herdeira do espírito do jovem Che e/ou da juventude que sonhava (não apenas) dos anos 60, por isso ela resolveu mergulhar numa das palavras vitais desta canção: estrada.
Sim, tantos anos depois, Marta atravessará a América para conhecer, de verdade, o que é um latinoamericano.
Muda apenas o veículo, e aqui sacamos ainda mais a dimensão da jornada desta moça com sonhos de menina e coragem e ideais de guerreira: ela cruzará a América não com uma moto – como a lendária La Poderosa de Ernesto e Alberto.
Ela atravessará os pampas, cordilheira e planaltos; cidades, montanhas e praias de bicicleta...
Marta seguirá o vento mais poderoso, o sopro desse imenso coração do tamanho da sua Buenos Aires, Argentina e América Latina.
Marta seguirá suas palavras, que zumbem no ar feito uma pancada nas mentes anestesiadas. Lembro uma frase marcante dela, dita numa noite de verão na amizade acolhedora da cozinha de sua casa-pousada:
“Eu pergunto às pessoas se elas leem jornal, se conhecem o que estão falando ou se apenas repetem o que viram na TV”.
A frase, o questionamento dela, é ainda mais necessário se pensarmos nos que se informam ainda menos, dando apenas leves olhadelas nas páginas iniciais dos portais da internet.
Marta lê jornal, todos os dias, sobretudo o Página 12, o grande jornal humano, honesto e ético de seus país, mas lê também o Clarín, porque sabe que precisa ler o outro lado, o dos poderosos e muitas vezes, mentirosos.
Mas Marta lê-decifra mais ainda as pessoas e o mundo. Talvez por isso ela tenha decidido botar o pé na estrada e fazer a viagem da vida.
Talvez por isso ela tenha desejado transformar seu coração e consciência em memória viva.
A memória viva de quem vai poder contar para a gente o que ela viu nas esquinas e entranhas da América.
Boa sorte, guerreira, um brinde a sua garra e à sua viagem quase inacreditável nestes tempos em que muitos acham que viajar é navegar pela internet.
Saludos desde Brasil, que venham então os Diários de Bicicleta!
Aguardaremos ansiosos pelos relatos de seu olhar e coração profundos.
Boa estrada da vida, moça, pra você, seu companheiro também valente, o Julián, e o fiel e inseparável cachorro que salvou das ruas!
Que essa canção te acompanhe nessa maravilhosa aventura dentro dos corações da América, e mando ela na voz de dentro da terra do maior cantor desse planeta, o grande Bruce:

domingo, abril 24, 2011

SESI - Caráter e coração de campeões

    Jogadores do SESI reverenciam o mestre-treinador Giovane, ex-mito das quadras

Um jogo, mesmo uma decisão, não acaba com o apito do juiz, o fim do tempo ou o último ponto da consagração. Algumas vezes, a razão da vitória, e também a paixão e beleza, encontramos nas entrevistas depois da conquista. O SESI foi campeão brasileiro de vôlei hoje pela primeira vez com uma fantástica atuação de Wallace, que mais parece uma daquelas vigorosas e ultrapotentes máquinas de jogar vôlei cubanas; do bloqueador e meio de rede Vini e outros heróis, como o sempre regular Murilo, o melhor jogador do planeta no último Mundial. Mas o inédito e belo título deste time de vôlei criado em São Paulo em 2009, foi melhor explicado quando as câmeras e o repórter buscaram o depoimento do treinador campeão, Giovane.
Giovane, ele mesmo, o primeiro jogador brasileiro a ser apontado como o melhor do mundo, lá no início dos anos 90, quando foi um dos destaques da seleção que conquistou a primeira medalha de ouro olímpica de nossa história, em Barcelona´92. O Giovane que se transformou num pop star assediadíssimo naqueles tempos e depois brilhou ainda mais 12 anos na seleção até ser ouro de novo, agora como humilde reserva, em Atenas´2004. Pois foi este supercampeão como atleta que agora teve o microfone à sua disposição para cantar sua glória precoce como treinador. Foi então que Giovane fez o que nunca vi em uma grande conquista do esporte. Logo que o repórter Nalbert (ele mesmo, outro ex-formidável atleta de gloriosa história na seleção) pediu sua palavra, Giovane olhou para o lado, como que procurando alguém, e disse “espera”.
Pouco depois entendi: Giovane chamou o treinador da outra equipe, do derrotado Sada/Cruzeiro, para estar na entrevista informal, ainda na quadra, junto dele. Ou seja, no momento em que poderia aproveitar sozinho o seu título, a sua façanha como treinador, Giovane teve a grandiosidade e generosidade de valorizar nesse momento o trabalho do treinador derrotado, mas cujo time fez também um excelente campeonato. Humildade é pouco, nem consigo encontrar palavra mais adequada para a belíssima e inesquecível atitude do nosso eterno Gighio, apelido com que Luciano do Valle cantava suas proezas nos tempos de jogador. O gesto é ainda mais valioso ao compararmos com a marra, ego descomunal e soberba dos super badalados e bajulados técnicos de futebol do Brasil e Mundo.
E o exemplo de caráter, hombridade e amor ao esporte do vôlei do SESI não parou aí. Após Giovane deixar a tela com seus olhos marejados e palavras e gesto exemplares, vemos outro eterno, o líbero Serginho. O guerreiro que saiu das quebradas de Pirituba, que perdeu vários amigos para o crime ou trabalhos inglórios, e um dia se transformou no melhor líbero do mundo, Serginho continua o mesmo mano decente e batalhador. Ele já chegou chorando na entrevista, por ter superado um grave problema nas costas, “coloquei quatro pinos, não conseguia nem amarrar o cadarço do meu tênis, e aí consegui superar isso, aos 35 anos...”. E logo ele ficaria ainda mais emocionado quando Nalbert chamou Murilo pra falar junto dele e perguntou:
- Como é jogar junto do Murilo, o melhor jogador do mundo, Serginho?
- Antes de ser jogador, ele é meu amigo, meu companheiro, Serginho falou como o grande ser humano que sempre foi e desatou a chorar de novo, amparado feito criança pelos abraços do parceiro Murilo, que ainda o animou com uma palavrinha mágica, “Seleção” e disse, - Você não vai me deixar na mão, vai voltar pra Seleção.
Depois dessa não havia mais porque ficar assistindo, a lição estava dada. Fui embora da lanchonete do clube (vi isso na TV de lá) com o sorrisão na alma de quem sabe o quanto o esporte pode criar um mundo mais bonito, em especial o vôlei.
O vôlei onde os caras comemoram pontos importantes comemorando-gritando com os companheiros, sem dancinhas ridículas, não naturais ou tiradoras de sarro.
O vôlei dos que são ídolos de verdade. Caras que têm ouro olímpico e o Mundo na bagagem falarem essas coisas e fazerem essas coisas, caraca, moçada, quanto caráter, quanta decência!
    Serginho e Murilo, irmãos campeões da quadra e da vida

sábado, abril 23, 2011

Bróder - Irmãos da Vida

(Indicado para quem não esquece dos amigos e amigas de infância que um dia foram inseparáveis)
Por mais que a vida seja um fio frágil suspenso num trapézio altíssimo – é muito fácil arrebentá-lo; acertar ou errar, cair, dar o passo errado – há algo imutável e inquebrantável na alma dos homens de verdade: os fios artesanalmente tecidos, com as linhas mais belas e fortes chamadas amizades do coração.
Amizades que vêm da infância, época da vida em que se sonha e se chora junto porque há sempre um ombro, uma palavra, um olhar ou gesto amigo nos amparando. Bróder é exatamente isto: uma celebração das amizades mais fiéis, dos manos que bateram bola juntos num campinho de terra esburacado quase sem terra.
Manos que curtiram as festas, os botecos e piraram nas mesmas minas – por que amigos do peito quase sempre se encantam pelas mesmas meninas?
Manos que um dia tiveram que tomar rumos diferentes e por isso se afastaram, mas jamais se esqueceram.
Broder é a história desse reencontro. Pibe saiu da favela do mas segue lutando para sobreviver com poucos recursos num pequeno apartamento em cima do Minhocão, esposa e filho pequeno e muitas incertezas. Jaiminho se deu bem, o sonho da bola deu certo e ele fez fortuna e fama na Europa. Macu (visceral interpretação de Caio Blat, o cara parece mesmo um mano da periferia em qualquer característica; no físico, gestual, linguajar, até na mente que oscila entre o sorriso e a raiva, entre a esperança e o medo) ficou. Continua junto da rara camaradagem e vizinhança que se conhece e se cumprimenta nas vielas do imenso Capão Redondo, zona sul de São Paulo. Mas continua também perto demais do outro lado: o crime que espreita sem parar quem precisa de dinheiro ou oportunidades “fáceis”.
O reencontro vai se dar no aniversário de Macu. Feijoada, pagode, samba, bolo caseiro; comidas que nenhum restaurante fino poderá igualar, mesmo se o arrogante empresário de Jaiminho acha que é muito melhor ele ir comer no Le Jardin, algum típico templo caríssimo da zona mais nobre – e esnobe, de São Paulo. O samba e o pagode? Mesmo quem não gosta vai finalmente entender a preferência da boleirada e galera da periferia pelo estilo alegre, um sopro bom, divertido e sensual – há sempre uma mulher sexy dançando - num ambiente cada vez mais duro.
Mas há o lado errado farejando como um franco atirador covarde escondido num telhado. Há a dívida de Macu. Há o sucesso de Jaiminho a incomodar a bandidagem, não importa se o craque cresceu ali, sonhou e sofreu no Capão antes da vida lhe dar uma chance.
Há as roupas, o relógio e o super carro do craque. Há o rap, que entra na trilha sonora do filme quando os três amigos fogem um pouco do Capão e escutam “Fim de semana no parque”. Há a catarse dos amigos que se reconhecem cantando juntos de novo uma das canções da adolescência. Mas lembremos, é rap, é Mano Brown quem canta. A canção só pode ser sobre uma dura divisão: a realidade da quebrada contra a vida mais fácil e o luxo e consumismo do lado de fora (e de dentro dos muros).
Onde há rap, quase sempre há a história de um conflito. Bróder poderia descambar para o típico banho de sangue fácil dos “favela movies” como Cidade de Deus, mas lembremos: este é um filme sobre três amigos, sobre o sentimento que nenhum criminoso conseguirá comprar: a amizade indestrutível de três meninos-jovens-homens quem um dia cresceram e sonharam juntos no Capão.
Sim, o perigo do crime ronda feito caçador de recompensas impiedoso. O sucesso de um e o fracasso dos outros incomoda demais, mas Macu, Pibe e Jaiminho, mesmo agora em vidas tão diferentes, um dia foram amigos do peito na infância. E isso o coração não esquece.
O coração, aquele que nem a distância ou a morte apaga.
O coração amigo, este o grande alicerce deste filme que nos faz acreditar que os sentimentos mais nobres ainda conseguem enfrentar o tanto mal e indiferença que se proliferam mundo afora; ou no cotidiano que nos afasta dos antigos parceiros.
Bróder é um daqueles raros filmes que têm seus momentos duros e impiedosos, mas também nos faz acreditar.
Bróder não. Mano. Esta a palavra mais exata, porque ser mano é ser paulistano, é ser brasileiro, é portar uma palavra e um sentimento mais fiel ao que ser irmão de coração de alguém quer dizer.

Aê, manos, vejam esse filme. É nóis. Tum Tum Tum, estou batendo, de mão aberta, no meu coração.

quinta-feira, abril 14, 2011

Paciência

Conectar é a palavra-chave. Deveria ser a palavra-sentimento mais importante desse mundo. Outro dia fui buscar minha jaqueta preferida na lavanderia com nome francês. Depois de ser atendido com muito mau humor, quando deixei a peça de coração*, desta vez, a recepção foi bem diferente. Recebeu-me um sorriso aberto, franco, daquelas raras pessoas que riem de dentro, com o coração. Na hora de pagar, percebi. A moça não perguntava, ela apontava as opções na maquininha e fazia gestos. Era surda-muda. Algo me distraiu e de repente ela sumiu, para buscar algo de outro cliente. Esperei, queria me despedir e agradecer atendimento tão belo e simpático. Ela demorava, caminhei até a porta (a pressa cotidiana, falta de paciência, pragas modernas) e de repente ela surgiu. Acenei dando tchau e ela devolveu o tchau mais efusivo que já vi, usando cada músculo das mãos com vigor e, claro, exibindo aquele espetáculo de sorriso de novo. Esses instantes me fizeram esquecer o dia duro, desarmar a cara fechada e ganhar um novo ânimo, essa palavrinha que simplesmente é igual à palavra em latim para alma: anima.
O mesmo ânimo ganha esse senhor que recebia parcas moedinhas na calçada até que uma mulher espirituosa e boa resolveu mudar as palavras que ele tinha escrito no papelão velho.
“Mude suas palavras. Mude o seu mundo”, é a mensagem do vídeo. Mude o seu olhar, ou melhor, use seus olhos, de verdade. Olhe querendo ver. E depois dos seus olhos se cruzarem e se conectarem, embarque nesse trem, experimente a maravilha de viajarem juntos.
O problema é que muitas vezes falta ânimo, disposição e coragem, falta essa vontade de alma.
Muito mais fácil é passar pelo velhinho e apenas jogar uma moedinha.
Muito mais fácil é não interagir com as pessoas.
Muito mais fácil é não se envolver.
Como bem escreveu o ex-roqueiro e hoje jornalista Felipe Machado, antigo colega de Cásper Líbero, em sua coluna no Jornal da Tarde,
“Ninguém tem mais paciência para nada, ninguém tem tempo para perder com nada: nem com o que é importante”.
Felipe falava de outra coisa, de novos relacionamentos, mas não estará tudo conectado? Será que não vale também para relações antigas, como amizades que não são resgatadas? Velhas ou novas ele cavoca fundo, “não há tempo para uma segunda chance. Como é que uma relação vai nascer se não dermos espaço para isso acontecer?... Deixa-se de amar por nada. Mata-se por nada. Vive-se para nada. Por que tanta ansiedade? Quem disse que o que virá depois é melhor do que o que está aqui? O importante é aproveitar o momento. Afinal, entre o ‘antes’ e o ‘depois’, a única coisa verdadeiramente real é o ‘agora’.”

Muitos vivem repetindo o clichê de que o agora é o mais importante mas não agarram o agora. Falta ânimo.
Música então, moçada, escutem Paciência, do Lenine, e coloquem um pouco mais de alma. Façam hora, façam horas e dias junto de quem pode ser muito importante.
A vida não para, eu sei, mas a vida é tão rara.
Paremos ela então. Dê um tempo, dê uma nova chance.
Paciência, grande ciência das relações, boa e cuidadosa mãe de amizades e amores construídos aos poucos. Só ela permite a verdadeira conexão.


* Minha jaqueta preferida é do grande San Lorenzo de Almagro, time de futebol argentino, de Buenos Aires, famoso pelo futebol bonito, bem jogado, bem tramado, bem amado.

sexta-feira, abril 08, 2011

Turma de 83

Ao sair de casa ontem à noite, me senti com a mesma alegria do passado, como se estivesse indo de novo me formar na escola. Me formar com meus amigos e amigas. Mais que isso, meus irmãos e irmãs, meus amores. Porque lá nos anos 80, não havia essa de conversar por telinhas, era com palavras, olhares e abraços. Muitos de nós éramos inseparáveis. Na escola, nas ruas em que caminhávamos sem medo, nas praças em que fazíamos nossos clássicos sagrados toda 6ª feira, nas casas dos colegas que eram muito mais que colegas e por isso visitávamos durante a semana, de tarde. Nas viagens em que íamos em um bando enorme, nas viagens em que consolidamos amizades que pareciam inquebrantáveis.
O tempo, o tempo... A luta fora de nosso refúgio, o Rainha da Paz, logo nos separou. Perdi primeiros o contato com as amigas que amava, e pouco a pouco os irmãos foram tomando caminhos diferentes, cuidando da vida, lógico, mas se separando.
Alguns anos depois do fim da escola, o grande irmão de papos intermináveis à beira da calçada permaneceu junto. Foram ainda alguns anos em que não fazíamos outra coisa senão lembrar de vocês, de nossos amigos e nossas musas, de nossas festas, viagens e até aulas. E ainda levávamos essa saudade para o mar, onde surfávamos e na espera das ondas, logo seus nomes invadiam nossas memórias mais bonitas, de uma infância e adolescência mágica. Dos anos incríveis que tivemos.
    (Bons tempos de surfe e lembranças azuis, de vocês, junto do brother-irmão)
Quando não estava com o irmão de escola, surfe e vida, a aura mágica do Rainha permaneceu comigo junto de minha namorada de tantos anos, de uma outra geração da escola, mas Rainha. Incrível como gostei dos amigos e amigas dela, e fiz uma irmã justo da melhor amiga dela. Incrível como o novo grupo era também baseado em rock, sorrisos, futebol e camaradagem. Eram Rainha. Éramos Rainha.
O tempo, o erro... isso também foi embora.
Quase não via mais vocês, e admito que me afastei, pois não podia compartilhar com vocês o que era fazer a própria família, não sabia o que era isso.
Cuidei então de criar outras crianças, meus alunos e alunas a quem tentei ensinar, mais que a escrever e ler com paixão, a viver as coisas mais belas. Ensinei a muitos o valor das canções, do esporte, do cinema, ensinei muitos a surfar, e fiz amigos, nas minhas turmas mais antigas, que se tornaram os meus irmãos de hoje.
Foram eles, o rock e as ondas que me apoiaram e salvaram nos anos mais duros, já que vocês precisavam de cuidar de suas famílias e novas vidas.
Mas sempre chegava uma lembrança de vocês quando a rádio (primeiro a 89 FM dos bons tempos, depois a Kiss) tocava certas canções. Quando a rádio tocava os afetos e carinho imenso que a gente exercia com os outros. Exercia é pouco, celebrava.
A gente se amava como só aqueles amigos de filmes se amam.
A gente se amava como a melodia e o significado da canção que começa a tocar agora enquanto lhes escrevo, In my life, Beatles. There are places I remember, all my life...
Um dia, anos e anos depois, até décadas, o Mariano resolveu criar essa lista e depois de bater um emocionado papo com o Luis pela net (isso aqui tinha que servir pra alguma coisa né), resolvi que tinha chegado a hora.
As mensagens bombando antes de ontem mostraram que havia a vontade de nos vermos de novo, de verdade.
Então veio ontem.
De repente vocês foram chegando.

De repente fomos nos abraçando e colocando as mãos sobre os ombros que um dia nos ampararam tanto.
De repente lembrávamos as gostosas loucuras que um dia fizemos nos anos do Rainha.
De repente vencemos um duro inimigo das velhas amizades, de repente viajamos no tempo.
Quase 30 anos se passaram depois dessa foto e conseguimos, tanto tempo depois, nos olhar e nos reconhecer de novo. E foi especial também como nos reconhecemos até em quem tinha nos deixado  há mais tempo e de quem lembrávamos pouco.
No final, confesso que bateu a tristeza, porque sei que voltarmos a nos ver será difícil.
Mas pelo menos percebi que o mais importante ainda existe. Milênios atrás, eu e o Português, sentados sozinhos em nossas pranchas, em nossa antiga praia mágica, olhando o horizonte, perguntamos um para o outro:
Será que só nós dois pensamos e sentimos isso.
Será que só nós temos saudade?
Será que eles e elas não esqueceram?

Ontem percebi que não. No álbum de fotografias mais bonito e verdadeiro, o coração, senti ontem que vocês não esqueceram.
Nunca quis fazer uma tatuagem talvez por isso. Sempre olhei dentro do peito e vi vocês, meus amigos irmãos, minhas amigas e meus amores do Rainha da Paz.
Um puta abraço a todos e deixo uma canção e um estado de espírito que deverei sempre a vocês, pela melhor infância e começo de juventude que poderia ter e tive.
Youth are like diamonds in the sun
And diamonds are forever

domingo, abril 03, 2011

O último suspiro do swell

Uma última respirada, o fôlego que se vai, o fim. O nada. Graças que até nisso o mar é diferente. O finalzinho do swell, na última 6ª feira, pedia um bate-volta urgente. Pedia uma reorganização nos trabalhos. Fazer da 6ª o sábado e depois trabalhar em pleno sabadão. Na mosca, seu Netuno me brindou com pequenos mas belos presentes. Suspiros de ondas. Doces meninas a surgir, demorando um pouco, mas a surgir. Pequenas mas perfeitas. A perfeição presente no tesão e no coração de quem percebe e aproveita a dádiva de uma manhã de sol, surfe e vida. A vida mais colorida de quem madruga e vê as primeiras cores do dia na estrada. As cores, só enxergadas por quem percebe a grandeza dos pequenos momentos. Sim, todo surfista quer ondas maiores, telas mais amplas e desafiadoras, mas como renegar essas pequenas paredes se vivo longe da praia? Como não sentir sensações e emoções grandiosas em uma simples paredinha lisa se essas pequeninas são o Mundo perto da realidade áspera e cinza de São Paulo? Como não me sentir em casa se ali no pico os estranhos sempre me saúdam com um cumprimento sincero, bem diferente das caras fechadas e buzinas abertas da megalópole?
Como não sentar lá atrás e dar um tempo felizão e surpreso só de ver as três belas e habilidosas surfistas pegando boa onda atrás de boa onda? Um grupo de amigas que em vez de ir ao shopping vai ao mar; em vez de comprar, surfar, a cena é deliciosa. Não, caras moças que não surfam, não é uma crítica, apenas uma constatação da opção infinitamente mais bela que a praia oferece.
A praia. Só de vê-la, a mente já se acalma, se liberta, sonha, viaja longe. É estacionar, descer, pegar a menina prancha, ser recebido suavemente  pela menina areia, sublime massagista natural, e logo brincar junto das meninas mais brincalhonas e divertidas que conheço, meninas ondas.
Depois de momentos junto delas, as décadas no corpo parecem regredir e volto a ser menino.
Volto, toda vez que volto para elas.
Toda vez que regresso ao elixir de conto de fadas chamado surfe.
O elixir que é existir, de verdade.
Surfo, logo existo. Respiro. Resisto.
O último suspiro, no mar, é sempre uma maravilhosa promessa azul, de uma nova vida.

* Pintura de Colleen Gnos