segunda-feira, dezembro 05, 2011

Sócrates - O gênio mais valente

Ele não foi apenas um dos maiores artistas da história do esporte. Foi também um líder, na bola e na vida e, coisa rara na pobreza intelectual dominante no futebol, foi um pensador articulado, original e combativo. Mais que isso, Sócrates era um raro homem fundamental. Vital para o povo brasileiro por ser um raro famoso preocupado com  a justiça, honestidade e um país melhor.
Vital por ser, de novo, um raro famoso a criticar os poderosos e corruptos que mandam nesse bilionário negócio chamado futebol profissional. Enquanto a maioria das nossas estrelas da bola preferem associar-se, por puro interesse pessoal, aos dirigentes e projetos mais duvidosos e obscuros - como sempre fez Pelé, e hoje faz Ronaldo ao unir-se ao antes desafeto Ricardo Teixeira e à Copa da vergonha, de 2014 - Sócrates sempre fez questão de fugir do mal. E revelar quem faz o mal.
O mal que Sócrates combateu desde jovem, quando, aos 20 e poucos anos, combateu a concentração e as ordens ditatoriais dos chefes do futebol em plena ditadura no Brasil. Foi ele o grande articulador e líder da Democracia Corinthiana, movimento que comandou no clube, liberando os jogadores de obrigações escravocratas como ficar trancado numa concentração às vésperas dos jogos. Será uma coincidência que aquele Corinthians livre, de Sócrates, Zenon, Biro-Biro, Casagrande e cia. foi a equipe que jogou o mais belo futebol da história alvinegra? Não será a liberdade lutada por Sócrates uma das razões daquele futebol de toques refinados, tabelinhas e lindos gols?
E a luta dele não ficou nos gramados. Sócrates participou ativamente pela campanha das Diretas Já, e pediu em históricos comícios a volta da eleição direta para presidente nas ruas de São Paulo. Imaginem o que era num meio tão alienado quanto o dos jogadores de futebol um craque mostrar suas convicções políticas e brigar por elas.
A mesma liberdade Sócrates liderou com a, para muitos, mais bela seleção brasileira da história, o Brasil da Copa de 82. O Brasil do treinador-mestre Telê Santana. O Telê que escolheu um grupo de artistas excepcionais para praticar o mais belo estilo de jogo que vi na história. Um jogo muito mais bonito que até o do maravilhoso Barcelona de hoje, porque o Brasil de Sócrates, Cerezzo, Falcão, Zico, Leandro, Júnior, Éder e Telê, diferente do Barça, atacava de todos os lados do campo. Porque o Brasil de Telê tinha quase 11 craques.

Mas voltemos ao Doutor. A injustiça histórica não deixou que ele fosse campeão do mundo em 82, nem em 86 (quando foi o melhor de nossos já veteranos mitos de 82). Depois, o corpo maltratado pelo cigarro e talvez já pelo álcool, foi afetando sua genialidade nos gramados, até encerrar a carreira sem o brilho do passado.
O gênio teve que sair de campo, mas o Brasil ganhou uma voz crítica fora dos gramados.
Pena que o Doutor não foi muito ouvido. Como nunca fez pacto com os poderosos - do futebol, das empresas ligadas a esse mundo, ou da mídia brasileira - a voz fundamental e as ideias de Sócrates não se espalharam pelo país. Enquanto muitas estrelas da bola e seus discursos vazios tomaram a grande mídia brasileira - craques dando declarações exclusivas banais ao maior conglomerado de comunicação do país, Sócrates ficou sempre meio escondido, combatendo moinhos no canal aberto menos visto do país, a TV Cultura, ou na revista Carta Capital, nossa menos vendida (nos dois sentidos...) publicação semanal.
Foi na Carta Capital que o Doutor escreveu um de seus últimos textos incisivos. Começou sua crônica falando de homens que sonharam e lutaram por um mundo melhor (e eu lia pensando, onde ele quer chegar com isso?), de repente Sócrates, em sua rica e poderosa argumentação, começa a detonar o capo maior do futebol mundial, Joseph Blatter, e seu comentário mentiroso de que “não há racismo no futebol”. Só depois entendi onde o Doutor queria chegar e reproduzo o trecho esclarecedor de quem nunca temeu nada, por falar à service da verdade:

Certamente os negros de todo o planeta se sentiram agredidos, menos um: Pelé. Que de preto parece ter somente a cor da pele. Ele não só corroborou com a tese de Blatter como acrescentou outras bobagens nascidas de seu pseudointelecto. De uma coisa sabemos de há muito: Pelé jamais sonhou com o que quer que seja.”

Pelé jamais sonhou, muito menos agiu por um mundo melhor, quis dizer o Doutor. Pobre Brasil, então, que perde Sócrates e vê hoje, além do “atleta do século”, um outro ex-ídolo tão importante dentro de campo, e tão amado em sua carreira, Ronaldo, virar parceiro de Ricardo Teixeira no Comitê Organizador da Copa de 2014. O que Sócrates terá pensado do jeito debochado com que Ronaldo deu sua entrevista coletiva ao ser empossado no cargo? O que o valente Doutor terá pensado da declaração de Ronadlo, de que a Copa não tem nada a ver com nossa necessidade de mais hospitais e saúde para o povo? O que o velho Magrão terá pensado de Ronaldo, um empresário do esporte, dizer que não existe nenhum conflito em ter negócios nesse setor com seu trabalho pela Copa de 2014?
Mais que um gênio - para quem não o viu jogar, um artista tão criativo quanto Zidane, tão frio na cara do gol quanto um Romário, tão cerebral quanto um Xavi e Iniesta juntos, tão líder como um Lugano (e um líder e capitão muito mais exemplar e inspirador que um certo Dunga...), tão elegante e cerebral quanto Ganso - Sócrates era um daqueles raros homens essenciais.
Por isso sua despedida deixa um vazio tão grande quanto o deixado por Ayrton Senna, outro Brasileiro maiúsculo que nos deixa saudades até hoje.
Mas como Senna, uma feliz coincidência (ou talvez uma simples questão de bom caráter e criação familiar, além de ótima formação educacional) faz as ideias e lutas de Sócrates permanecerem vivas de outra forma. Se Ayrton teve na irmã Viviane a executora de seus sonhos de um país melhor, com a criação do Instituto Ayrton Senna, Sócrates tem no nobre trabalho de seu irmão, Raí, a disseminação de parte de seus sonhos.
Raí, junto de outro homem exemplar, Leonardo, toca a Fundação Gol de Letra, e ajuda a dar uma chance de vida para muitas crianças carentes.
Oposto do irmão como atleta, pois se cuidava e tinha um físico excepcional, Raí continua, porém, a luta do Doutor de uma outra forma.
Mas continua.
Pena, no entanto, que as pedradas de Sócrates, perderam para sua dependência do álcool, que fragilizou demais seu organismo.
Pena que não o ouviremos mais, nós, os que não somos reféns da grande mídia e de sua reverência a falsos ídolos com quem tem negócios.
Pena que não teremos mais o Doutor para detonar e cobrar muitos pilantras que mandam no futebol brasileiro e mundial.
Pena que Sócrates, que defendeu o Corinthians com tanta arte, coragem e beleza , era persona non grata na atual administração do clube, porque ele era contra o Itaquerão:

“Não precisa construir outro estádio em São Paulo. Os Estados Unidos não fizeram nenhum. A Alemanha fez um. Será um carnaval de um mês com uma bela conta para pagar depois. Que o Corinthians precisa de um estádio, é óbvio. Mas não precisa ser agora, nem com a gente pagando. Para que? Vai levar o que, além do estádio? É uma área para onde nunca se deu valor. Não tem hospital público de boa qualidade, educação de boa qualidade. Estádio de futebol não leva isso. Vai ter especulação imobiliária. Aí, o corinthianos que mora lá vai ser expulso. Isso não é avanço”, declarou Sócrates em uma de suas últimas entrevistas, na revista da ESPN ainda nas bancas.
Pena que um Homem fora de série como esse nos deixou. No meio dessa série de homens, famosos e ídolos tão pequenos, Doutor Sócrates é uma perda irreparável.
Mas a luta continua nas vozes de jornalistas corajosos como um Juca Kfouri (grande amigo de Sócrates), um Mauro Cezar Pereira, um Lúcio de Castro, e algumas poucas estrelas do esporte que arregaçam as mangas por um Brasil mais igual e decente. Em especial, destaco aquela que sempre teve a mesma coragem do Doutor, Magic Paula.
Que as ideias de Sócrates sejam conhecidas pelas novas gerações de profissionais do esporte que trabalharão na Copa e na Olimpíada. Que eles e elas tenham coragem de trazer algo de bom para o país e povo, e não só as dívidas astronômicas que virão. Isso, claro, se conseguirem espaço entre os muitos chefes de quadrilhas que dominam o esporte nacional... Uma das raras exceções parece ser o presidente do Santos, Luís Álvaro, um cara que faz tudo para preservar suas estrelas e com isso deixa tesouros no país em vez de só pensar em faturar mais.
Do resto, poucos se salvam.
Que saudade, Doutor!

4 comentários:

  1. Parabens zé! abraço
    fernandorelha

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  2. Grande Zé, fazia tempo que não lia um texto seu, mas esse em especial, não pude deixar de ler.
    Tenho a infelicidade de nunca ter assistido o Doutor com a bola nos pés, mas sempre ouvi do meu Pai, tudo que ele representou para o Coringão. Independente disso, o Dr era muito maior que o seu futebol, vai deixar saudades, e admito que não estou com coragem de assistir ao cartão verde mais.
    Abraços,
    Guilherme Ribeiro

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  3. Esclarecedor!!!Bruno Zinneck

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  4. Esteban Cabrera, nascido em Rivera - Uruguay

    Caro Zé: Devo agradecer-lhe pelas notas e por trazer-nos tão bela leitura, fazia tempo que não me emocionava desse jeito ao ler algum artigo.
    Se bem nunca vi o Magrão jogar, sou corinthiano de nascença e por isso sinto q o conheço e o q representa não só para o Corinthians mas para o futebol brasileiro. E uma lástima q tenha ido embora, ficará na verdade um vazio em todos os torcedores e tenho certeza q em voces brasileiros tb por sua luta fora de campo.
    Aproveito a oportunidade para agradecer-lhe também pelas lindas palavras sobre o futebol uruguaio q escreveu em 2010 mas q só hoje tive a oportunidade de ler, é incrível como um brasileiro consegue expressar os mesmos sentimentos q nós uruguaios tivemos naquele ano, e como deleitou-se pelo nosso futebol da mesma forma q nós nos deleitamos (ou eu me deleitei) pelo seu futebol desde 94 com os seus grandes craques e seu jogo bonito. Parabéns, de coração, de um irmão uruguaio.

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