terça-feira, dezembro 27, 2011

A canção do vento


  Sábado ou domingo cedo. Enquanto subo a pé a avenida, armado com meu skate longboard, sinto mais uma vez a inesgotável fonte de sentimentos e significados que meu único mas poderoso brinquedo urbano me proporciona.
   Sinto a arma de brincar como meu violão ou guitarra, meu instrumento musical que carrego com as mãos até o pico, antes de descarregá-lo e tocá-lo com os pés. Mas não é qualquer violão, pois a eletricidade de uma queda de longboard é tão grande e intensa que me sinto como aquele mariacchi pistoleiro do filme de Robert Rodriguez, interpretado pelo Banderas.
    Sim, um mariacchi pistoleiro do bem, caminhando tranquilo, alma lavada, e pronto para mais um duelo ladeira abaixa. Só que esse duelo é na verdade parceria, pois o chão duro da descida é liso e, portanto, é onda perfeita. E voar ladeira abaixo é música e dança.
   Voo. Enquanto desço a suave e longa montanha de asfalto, ouço a canção do vento, componho minha própria música. Cada acorde, um movimento. Movimentos que são dança. Apeno desço e faço curvas abertas, amplas, o corpo brincando de estilo. Sim, às vezes é preciso virar mariacchi pistoleiro ao desafiar os carros que vem de trás. Em geral há respeito, mas sempre há uma besta de mal com a vida ou que ainda traz o velho e estúpido preconceito de que skate é coisa de vagabundo. Mais um infeliz vai ter que esperar, coloco a mão, “espera”, não mudo meu caminho, ele que espere alguns segundos (é pedir muito?) antes de eu terminar a descida e desaparecer entrando na avenida ao lado.
   Minha raiva contra a estupidez humana termina logo. Mais um idiota vai embora acelerando enquanto eu desço de meu violão mágico e caminho de novo, subindo a tranquila avenida paralela. Um último pensamento para o imbecil sobre rodas: Quem é mais rápido? Um motorista escondido dentro de uma máquina ou um homem voando em plena avenida que para a maioria é apenas uma via de passagem? Só sei que minha passagem é grátis. Não gasto gasolina. Não fico preso. E ainda bebo vento, adrenalina e liberdade.
    Subo tranquilo, há verde, passarinhos de todos os tipos e raros carros por onde subo. Há algumas pessoas que cumprimento, como o professor, o passeador de cães, os garis, o empregado de uma mansão que chega no casão e o cão explode de alegria ao vê-lo. Há os cães a quem dou bom dia. Tem um que tá sempre sentado com cara brava e triste, será que o dono passeia com ele? Há o cão malucão que faz a maior festa, esse eu sei que passeia, já o vi felizão andando com o dono.
   Sim, essa subida é longa e cansa, mas prefiro o esforço do que pedir carona na outra avenida que desço. Deve ser minha aversão à máquina e seus motoristas. Deve ser essa subidona a pé dura mas relaxante espiritualmente. Toda subida é uma ascensão. É preciso ter fé. Fé na brincadeira que devemos injetar em nossas vidas. Fé na liberdade de caminhar com os próprios pés.
   Fé na vida.
   Fé na canção do vento que anima os mariacchis do asfalto, os longboarders.

3 comentários:

  1. Belo texto Zé, cada rua é um desafio, principalmente aqui na capital..
    Abraço.

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  2. Precioso, Zé, como todas tus cosas. Si consigo hacer una buena traducción lo subo a nuestro blog con todos tus datos, como siempre.
    Un abrazo grande desde Uruguay,
    Eliza y Miguel

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  3. Hice la traducción, me parece que me quedó bastante bien y lo subí... pero también puse tu versión original en portugués para que nuestros lectores aprendan un poco de tu idioma, que es tan bonito. Acá está: http://blogs.montevideo.com.uy/blognoticia_52682_1.html
    Un abrazo,
    Eliza

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