terça-feira, janeiro 25, 2011

O homem de papel

Margens do Rio Paraná, Rosário, Argentina, janeiro. O rio segue belo, amplo, verde, silenciosamente valente correndo em direção ao mar. Belo porque é a grande vista da cidade, seu respiro. O problema é esse: Rosário antes não precisava deste respiro, desse alívio. Porque esta era a “ciudad para se vivir”, pela excepcional qualidade de vida que suas amplas áreas para o lazer e esporte proporcionam, às margens do rio. Não me parece mais se inserirmos na equação do viver algo vital para mim: o calor humano do povo . Os rosarinos já me parecem não ter a simpatia de antes, ou eu é que não percebia isso pela paz que o Paraná me dava. O caso é que o rosarino típico está mais apressado, dá informações tão rapidamente como se quisesse se livrar logo de quem lhe pergunta. Outro indicador de simpatia em queda é o tratamento frio no comércio, em especial na hora das refeições e nas lojas de qualquer coisa.
Assim, desanimado, estava meu estado de espírito, enquanto olhava para o rio (como um surfista pode ficar em paz num rio se o temor maior desta espécie é justamente uma água tranqüila? Bom, isso já expliquei num post antigo). Eis que aproxima-se um pescador e sua sacolinha de tralhas úteis para a sobrevivência.
Sabe como é a desconfiança típica de um paulistano, né, ainda mais quando o cara perguntou se eu tinha cigarro ou um baseado. Eu já me preparava para sair dali quando o cara começou a perguntar de eu onde era e percebi sinceridade quando ele disse do parente que tinha ido pro Rio, “deve ser muito bonito lá, né?”, me perguntou.
Foi então que troquei ideias com o pescador que na verdade era cartonero (catador de papelão e coisas, o nosso carroceiro). Foi então que ele sacou o seu maior tesouro, que começou a me mostrar todo entusiasmado: uma revista das mais caras, mas com belíssimas fotos e dicas de lugares especiais na Argentina e Chile.
Foi bacana ver a alegria genuína deste legítimo representante do povo argentino mais carente, da massa mesmo, ao revelar que já estivera em alguns desses lugares, ou perceber o sonho dele em conhecer esses lugares bonitos. E bacana foi ver como tratava aquela revista como uma jóia, muy rica, como ele afirmava.
Aqui divago um pouco sobre a joia e a sensação que só o papel provoca. Em tempos de internet, i-de-todo-tipo e livros eletrônicos, só o papel tem esse feitiço e portabilidade democrática e segura de ser levada a qualquer canto. E como alguém pode se dizer um leitor sem ler no papel um jornal ou revista importante (elas ainda existem entre o lixo fascista ou vazio das vejas e caras que se proliferam)? Não pode, porque a leitura no papel é muito mais ampla do que a na internet. Eu digo a leitura de um jornal ou revista por vez. O jornal em que lemos um caderno de cada vez, e não os poucos links de algum caderno que lemos na net. É fato: quem lê no papel, lê muito mais, porque ninguém consegue ler muito sentado desconfortavelmente na mesa de um computador e olhando para uma tela cansativa. E façam um teste: quantos compradores de i-Pads leem mais uma edição virtual que o leitor da boa e velha edição em papel?
Ali, em Rosario, do pequeno tesouro daquela revista que o cartonero achou no lixo, o papel - que muito moderninho e/ou hiper consumista quer matar porque prefere gastar muito dinheiro em aparelhos novos – voltou a mostrar seu valor.
Mas valor maior mostrou esse homem do povo, que me ofereceu um papo profundo sobre a economia e sociedade argentina, as mulheres (que o deixaram e a de hoje), Brasil e lugares para se conhecer. Ah, só me lembrei de fazer a pergunta fundamental entre homens da maior parte do mundo no final. Uma pergunta tola em se tratando de Argentina, porque para a esmagadora maioria dos homens do povo de lá, a resposta é a mesma:
- Qual o seu time do coração?
Ele dá uma risada, a resposta só poderia ser uma:
- Boca, por supuesto!
- La mitad mais uno!, devolvo para a satisfação imensa dele com o lema do clube mais popular de nossos hermanos.
Despedi-me do homem de papel mas antes de ir ele ainda me surpreenderia com sua consciência e conhecimento político. Ele diz que está com a presidenta Cristina – “os Kirchner foram os melhores para o povão”, sabe do complô dos grandes produtores agrícolas com a extrema direita argentina. Sabe até que o maior jornal do país, o Clarín, é da direita, e que sua dona tem como filhos duas ex-bebês arrancados de seus pais, porque seus pais desapareceram na mãos da ditadura militar. Pior, esses dois filhos foram comprados pela empresária. Pior ainda: esses filhos não querem saber quem foram seus pais. Preferem a fortuna e o conforto que têm hoje em vez de descobrir qual o sangue e classe social que lhes deu a vida.
Depois disso, parti, e lá ficou o homem de papel, um dos poucos seres humanos que salvaram a simpatia em baixa deste lugar que já foi maravilhoso, Rosário.
* Além do homem papel, teve a moça da loja de roupas e os três figuras da livraria mais humana da cidade, bem diferente dos mal educados e antipáticos atendentes da rede Ateneo, mas isso é assunto para outro post. E claro, os taxistas apaixonados por futebol.
PS - Quem quiser ler outro texto, mais antigo, sobre a dignidade de um catador de papelão argentino, leia o segundo texto do link abaixo:
Sobre a dignidade

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