segunda-feira, março 08, 2010

A grande fuga do surfe


Chega uma hora que não é possível mais ficar em São Paulo. É preciso limpar a mente da agressividade da selva urbana e sua “gente moderna”, muitos existindo e agredindo como psicopatas urbanos em seus veículos de guerra – carros, motos e ônibus impacientes, velozes e sem educação. São os assaltantes de nossa paz.
Além do ambiente e seres hostis, o coração, quando sofrido, também precisa urgentemente de um outro lugar. Por isso precisamos fugir de casa para encontramos um abrigo para muitos mais acolhedor e feliz chamado oceano. Sim, nos dias, meses ou anos tristes, o mar é o lar salvador. Sorte dos felizardos que moram ao lado dele. Azar dos que precisam fugir, desesperadamente, e dirigir uma centena de quilômetros ou mais para relaxar e se purificar nas ondas.
Alguns dias o peito grita ainda mais forte. Não dá mais pra esperar. O coração maltratado, a alma aprisionada e o corpo limitado pelos movimentos de uma academia ou pela falta de horizontes da cidade sem mar pedem o urgente drop out, o cair fora. Sim, a expresssão “drop out” era algo maior quando surgiu nos anos 60: nasceu para designar as pessoas que não aguentaram a rotina, a violência e o individualismo destrutivo da sociedade e do sistema e literalmente caíram fora em busca de vidas alternativas. Vidas muitas vezes junto da Natureza.
Graças que hoje - numa sociedade e mundo ainda mais opressivo, barulhento, violento e competitivo – ainda podemos contar com um milagre chamado bate-volta.
Mas milagres não esperam. Por isso que surfistas acordam de madrugada. Por isso que já estava no carro, indo buscar o brother, quando o temporal caiu. Por isso, mesmo num dia eu se anunciava sinistro, os dois índios não desistiram de ir para a praia. Por isso, mesmo com a neura habitual de um paulistano com os alagamentos (que já tomavam parte da Avenida Bandeirantes, via de saída-escape do inferno de Sampa para o litoral), o carro não voltou atrás.
Partimos porque o encontro com o mar era inadiável. O coração fechado precisava ser arrebentado com a vastidão do mar e a maravilhosa brincadeira das manobras nas ondas.
A chuva, brincalhona, não deu tréguas. Foi céu abaixo a descida toda, sem dar um tempo nem quando chegamos, na praia mais próxima possível com boas ondas (o destino inicial, o pico mais amado, foi abortado, porque somos índios mas não burros e loucos pra enfrentar a estradinha ruim que precisaríamos pegar para ela). Sem casa pra se trocar, o lance foi se virar dentro do carro mesmo. Lá fora, aguaceiro, e bora pro mar. Bora em alta velocidade, parti correndo como poucas vezes fiz e logo na entrada já me sentia como se estivesse na casa da mulher amada com ela me recebendo para um passeio de mãos dadas seguido de um vinhozinho juntos no sofá.
Estava salvo no mar. Por que o mar sempre nos salva?
Talvez porque voltemos a ser puras crianças instintivas lá dentro. Talvez porque as ondas nos devolvam os sorrisos de meninos que acabam de ganhar um presente do Papai Noel. Talvez porque naquele mundo de água sem fim fiquemos tão livres dos piores pensamentos e frustrações (o mar é pura ação, reação, emoção e tesão). Talvez porque a beleza e energia das ondas nos façam esquecer por segundos - com gosto de anos! – os erros que cometemos vida afora.
Talvez porque um simples bate-volta para surfar seja a mais sábia e bela fuga para os homens atormentados.
Por isso que um dia de índio, de chuva do começo ao fim, é agraciado com algumas ondas fundamentais. Fundamentais porque alimentam a alma.
Sim, a alma. Esse algo maior que não conseguimos traduzir direito é o que sentimos quando surfamos. E ela, a alma - livre, azul, criança, profunda – coloca nosso coração ferido no colo a cada session como essa. Porque o mar é mãe e as ondas, amigas fiéis e namoradas.
Porque o oceano é a mulher que salva pedacinhos grandes de nossas vidas conturbadas.
Agradeço então a esse oceano mágico por esse sábado de tempestade sinistro, cinzento e assustador apenas para os outros, aqueles que não surfam.
Os dias mais fechados podem ser os mais libertadores.
O que é um dia fechado perto de uma cavada limpa, redonda, projetando uma manobra ampla e aberta como o céu mais azul?
O que é a chuva senão confetes líquidos de mais uma queda regeneradora no mar?
O que é a vida senão uma fuga e caça sem fim?
Obrigado então, querido mar e querido surfe, por alimentar e curar meu corpo, coração e alma de novo.
(E valeu, brother, legítimo índio esperto, que não titubeou a enfrentar aquela manhã negra para também se salvar. Mas fica esperto: tá maluco, lycra vermelha numa praia cheia de urubus?! Haha, o mais divertido foi ver a cara assustada do moleque quando o filhote de urubu passou voando acelerado bem perto. E melhor ainda foi a reação dele quando lhe disse que era só um filhote, - Caraca, se isso era um filhote, imagina o pai!)

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