sexta-feira, setembro 23, 2005



O olhar de Fabiana Beltrame
Vida de povo. Como os brasileiros típicos, trabalhadores humildes, a jornada dessa atleta começa antes do galo tomar coragem pra acordar. É madrugada, gelada, e a catarinense Fabiana Beltrame já está na água, junto de outras dezenas de atletas que treinam para o Campeonato Sul-Americano de Remo, na raia da Universidade de São Paulo.
9 horas. Fabiana passa silenciosa após o primeiro treino do dia. De longe percebo um olhar distante, talvez triste. Engano. É apenas fleuma; serenidade. A marca dos grandes atletas. A frieza aparente; na verdade, auto-controle. A fibra, de uma jovem valente e séria.

Não chove, nem faz frio, bem diferente do vento gelado e tempestade que desabara entre seis e sete da manhã quando ela já treinava, como todos os dias, de segunda a segunda. Remadores só folgam quando dormem. Ou melhor, quando desmaiam sobre uma cama, tamanha a intensidade dos treinamentos. A exaustão como companheira diária.

Encontro Fabiana, ela me leva junto à última garagem de barcos, para podermos nos sentar em um velho banco de madeira ao ar livre. Educada e gentil, traz um colchão pequeno para colocar sobre o banco molhado. Logo percebe que o colchão está ainda mais molhado, sorri, vamos pro banco mesmo.

Começa a entrevista. Em poucos minutos aquele rosto que muda pouco de expressão diz e ensina muito. Lições que começam em seus olhos. Calmos, puros. Sentidos, do desgaste dos treinos e vida de privações de uma atleta de alto nível. Olhos castanhos esverdeados, talvez o contrário.

Olhos decididos. “Não faz sentido só ir trabalhar, voltar pra casa, comer, dormir”, esse é o veredicto dela sobre quem não praticam esportes. “Nosso corpo precisa se movimentar”, diz a bela moça, natural de Florianópolis, 23 anos, quase formada em Educação Física. A primeira (até agora, única) brasileira a classificar-se para uma Olimpíada (Atenas´2004).
Como uma menina de Floripa, “a ilha da magia”, tantas praias e liberdade foi escolher modalidade tão brutal? “Eu sempre andava de bicicleta pela avenida Beira-Mar, via aqueles barquinhos passarem, os remadores, e tinha um primo que remava”. Com 15 anos ela também foi remar no mar.

Menina bonita fazendo remo? Fabiana penou contra o preconceito. “Meus pais achavam que o remo era um esporte só de homens e relutaram, principalmente por que os treinamentos são duros. Depois alguns amigos diziam que eu ia ficar fortona, musculosa, etc. Nunca liguei pra isso, porque desde o início gostei do esporte. No próprio clube em que comecei, ouvia alguns comentários preconceituosos, principalmente de pessoas mais velhas, que achavam que mulher só entrava nas garagens de remo pra arranjar namorado, vê se pode? Mas aos poucos fui conquistando meu espaço e eles passaram a me respeitar mais.”

Não merece muito respeito quem se dedica a fazer da vida uma grande repetição?
Não é muito duro passar a vida toda fazendo o mesmo movimento? Ela me olha surpresa mas logo mostra a intensidade de quem quer demais. Sim, é difícil, mas Fabiana revela que nas competições ela finalmente se liberta, pela luta e pelo desafio.

E há sim liberdade. “Tem as viagens para treinar (com a seleção) ou competir. Mudamos de raia, o ambiente fica diferente. E o grande prazer do remo é ser um esporte ao ar livre. Me sinto muito bem assim, nunca gostei de ficar trancada dentro de uma academia, acho que por isso procurei o remo.”

A liberdade vem também em poder lutar pelas vitórias e pelo sonho de qualquer atleta de sua modalidade: a Olimpíada. Agora seus olhos estão verdes, não apenas pelo sol que finalmente dá as caras. Olhos verdes e brilhantes como o rosto todo. Como seu sorriso leve mas iluminado. Como a voz da cantora que mais aprecia, Alanis Morrisette, Fabiana parece cantar por dentro you live, you learn [você vive, você aprende]...”Eram os melhores que estavam ali (na Olimpíada de Atenas). Vi que ainda falta muito ao Brasil no remo, mas foi mágico estar ali com atletas do mundo todo e de outras modalidades, gente de todo tipo.” E ainda tinha a experiência do refeitório, vendo feras como Michael Phelphs, “pô, é um mito, e ali do seu lado”.

Rara e atenta observadora é essa mulher que consegue aprender apenas olhando um mito. São seus olhos de novo, de quem sabe sentir. De quem sabe que o treinamento e muito, muito sofrimento, é o diferencial dos campeões.

Campeões que se fazem lá atrás. Campeãs como a atleta que mudou sua vida, a romena Nádia Comanecci, a primeira ginasta a receber uma nota 10 na história (Olimpíada de Montreal, 1976). Fabiana estava ainda nos primeiros anos de escola. “Eu tinha uma professora no primário que adorava passar o vídeo da Nádia. Aquilo me marcou muito: a dedicação toda, o sofrimento que ela passou. O sofrimento de quem veio de família humilde e passou fome por causa de seu esporte (cruel, mas quanto menos gordura tiver, mais possibilidades têm uma ginasta). Aquilo ficou guardado na minha memória, a busca por ser a melhor.”

A guria catarinense cresceu inspirada pela super estrela da ginástica e três palavras essenciais, segundo Fabiana, para uma atleta que deseja ser alguma coisa: “dedicação, disciplina e perseverança”. Outra atitude vital é clara em seus olhos cansados: aprender a sofrer. Porque o remo não admite distrações, deslizes, falta de foco ou simples dias para não fazer nada e relaxar (as folgas são raras, pingadas em gotas durante o ano).

Não é duro demais dedicar a juventude à uma rotina militar? “O remo é a minha vida”, responde na lata. Um amor sofrido, como qualquer grande amor. Volta a despontar um lampejo meio triste em seu rosto. Lembrará de tanta coisa de que precisou abdicar, como uma simples mais impossível festa com os amigos? Passa rápido. Logo a mirada e meta dela são cristalinas de
novo.

Se muitos encontram a felicidade e a realização em modalidades mais livres como o surf, tão popular em sua Floripa natal, Fabiana encontra isso na linha de chegada de uma regata. Ali, no lugar mais alto do pódio do Sul-Americano que acaba de vencer. Quase sem forças para comemorar, percebo a bela das águas tão feliz e satisfeita quanto um surfista, o mais passarinho dos esportistas.

Depois dessa vitória, ela pode relaxar um pouco. Em breve voltará a sua Floripa e talvez até possa ver no dvd um filme, uma de suas raras diversões. Procurará suas histórias preferidas. De sonhos lutados, como À Espera de um Milagre ou Um Sonho de Liberdade, este último, a fantástica história de um preso que cava com uma pequena pazinha, um pouquinho cada dia, o túnel que o permitirá fugir-viver.

Agora sim compreendemos a luta diária da remadora. Aquele repetir, repetir e repetir. Os treinos e treinos: de noite-madrugada penetrando o dia; de tarde até anoitecer; com sol, chuva, frio, com vento (lembrem que ela vem de Floripa). Essa é a vida dessa bonita mulher confinada num barquinho estreito: fazer de cada remada uma martelada em busca de sonhos maiores. Pelo menos ela pode curtir algumas conquistas - nacionais, sul-americanas e pan-americanas – enquanto vai abrindo seu caminho para o sonho maior: chegar a Pequim´2008 e melhorar bem sua 14a posição final de Atenas.

Ao me despedir de Fabiana Beltrame, tento captar mais de sua face tão delicada quanto determinada. Algo então emana ainda mais forte desses olhos profundos de combate e do seu jeito contido, quieto. Algo que só vemos em campeões.

Não duvidem. Ela estará em Pequim. Mais experiente, madura, forte e competitiva. You live, you learn...

2 comentários:

  1. A preguiça me impediu de comentar antes, mas tô aqui!! O texto tá lindo, deve ser uma puta atleta msm... Bjão

    Bia

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  2. oi Zé!
    Só li esse texto hoje, acredita nisso?? hahahah
    Bom, antes tarde do que nunca, ne?
    E aqui vai o comentário... AMEI!
    O texto tá DEMAIS! Eu não fiz um décimo de treinos que essa menina faz, mas eu sei muito bem do que ela tá falando, hahaha.. e vc captou de um jeito incrível.
    Parabéns!
    Keep writting, você tem o dom!
    KK
    ;-)

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