sábado, maio 22, 2010

A canção eterna


Era apenas uma cena mas estava ali toda a arte do cinema* que iguala-se à vida ao interpretar com tanta verdade, emoção e dor a realidade. O jogo, duríssimo, é disputado sob uma neve incessante. O personagem é um antigo astro do futebol americano que brilhou muitos anos atrás e hoje é apenas uma fagulha do que já foi ao defender uma equipe inexpressiva. Por isso seu rosto é uma batalha entre as glórias distantes que são sufocadas pelo presente ingrato. Por isso ele não quer se aposentar e oferece seu corpo arrebentado - pelos anos de choques, pancadas e contusões - à sede de sangue dos mais novos. Mas a hora sempre chega, e podemos perceber na magistral interpretação dos olhos e músculos da face de Dennis Quaid o exato momento em que seu personagem, o Fantasma, percebe a passagem do tempo e descobre que chegou a hora de sacrificar uma parte do próprio coração. O sacrifício significa deixar os gramados. Deixar a única coisa que fez bem na vida: disparar em alta velocidade como running-back, desviando ou suportando os bloqueios até esta metáfora de linha de chegada da vida que chama-se touchdown, o momento máximo deste esporte.
Como deixar de fazer o que se mais ama? Como o Fantasma – apelido ganho por suas arrancadas tão rápidas que os adversários pareciam não vê-lo – poderá suportar tornar-se um fantasma de si mesmo, uma sombra da estrela incandescente que já foi?
A verdade é que ele não conseguirá suportar o fim, e Dennis Quaid mostrará isso até o fim do filme, especialmente na cena em que, 20 anos depois, é homenageado no estádio onde um dia brilhou tanto. Os aplausos tímidos para ele, em contraste com a ovação em seguida - na entrada dos astros do time de hoje - causam outra profunda cicatriz no seu coração incompleto. Na sequência, outra cena de arrepiar. O velho Fantasma sai do estádio, decepcionado, mas ao ouvir o clamor da torcida, seus olhos brilham e ele diz ao amigo: “Você ouviu isso?! Foi um touchdown”.
Mesmo quando o passado já está enterrado, seguimos ouvindo-o e sentindo o seu canto perdido mas imortal.
Este o drama dos grandes nomes do esporte a quem um dia as pernas não respondem mais. O drama que foi tão bem definido pelo ex-craque do futebol, um meia refinado dos anos 70/80, e maior jogador da história da Ponte Preta, Dicá: “Quando eu durmo, ainda sonho, até hoje, que estou jogando futebol”.

* O filme chama-se "Quando eu me apaixono" (Everybody´s All American), e além de Quaid conta com a exuberante atuação da atriz que faz a mulher que o acompanha a vida toda, Jessica Lange.

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