Houve um tempo em que a vida parecia acontecer em preto e
branco. As opções em produtos e
atividades eram poucas. Nos anos 60 e 70, o único aparelhinho tecnológico que
seduzia os homens por muito tempo era a televisão. Só que essa tv tinha poucos
canais e poucos programas. E não passava qualquer jogo que você quisesse ver.
Quem tinha um time do coração precisava ir ao estádio para vê-lo. Precisava
viver a emoção real do jogo ao vivo.
Eram tempos ainda sem tanto curso disso e
daquilo pra ocupar o “tempo livre”, muitas vezes sem um interesse real e
profundo. Eram tempos em que as pessoas viviam o tempo livre mergulhados num
livro ou brincando, jogando e vivendo ao ar livre.
Até uma paixão universal
como a música oferecia um processo mais bonito e humano: para ouvirmos um
artista tínhamos que colocar o LP num aparelhinho que vários escutavam ao mesmo
tempo. E era preciso esperar meses, como se aguardássemos a chegada de um
grande amigo ou paixão que viajara, para ouvirmos o novo álbum de nossa banda
preferida. E que gostoso e que experiência muito mais rica era escutarmos pela
primeira vez os belos bolachões de vinil (depois de namorarmos e tocarmos
aquela capa enorme) junto dos amigos, com o som se expandindo das velhas mas
comunitárias vitrolas. E como era bacana também quando uma modernidade como a
pequenina fita cassete virava presente para alguém querido. A gente dava o
máximo de nosso bem querer para fazer uma coletânea dos sonhos. E escrevíamos
de próprio punho o nome das canções, com algo que necessitava de capricho,
cuidado e carinho chamado caligrafia.
A vida era em preto e branco, pelas poucas opções em
produtos, mas paradoxalmente, pareciam muito maiores as opções para se viver.
Ou alguém aí acha que ter à disposição milhares de joguinhos é um cardápio
maior que o oferecido pelas antigas brincadeiras de rua? E os cursos? Hoje
podemos fazer curso de qualquer coisa e qualquer idioma, mas será que isso nos
enriquece mais que o antigo hábito de lermos muitos livros, sem distrações?
Será que as inúmeras opções não acabam fragmentando nossa capacidade e
formação?
Todo esse longo preâmbulo, realista e não saudosista, trago
para manifestar minha tristeza pelos comentários dos adolescentes e jovens
sobre essa obra-prima que acaba de ganhar o Oscar, o filme francês O artista.
“Ah, é em preto e branco”, “ah, o cara fica dançando e fazendo careta”, “não
tem fala”, “é uma coisa velha”, e o pobre blá blá blá multiplica-se. O pior é que a maioria dos comentários vieram
de moleques que não viram o filme, presos que estão aos seus pré-conceitos e à
ditadura do novo e do moderno vendida pela mídia.
Não sabem o que estão perdendo. Não sabem que perdem a
interpretação máxima que um ator e atriz precisam ter devido à ausência de cor.
Como minha sábia mãe professora e amante do cinema e da vida sempre disse, o
preto e branco obriga o ator a ser muito expressivo e dizer muito com “meros”
olhares. Não há o recurso da cor e suas milhares de tonalidades e nuances para
disfarçar uma expressão facial pobre. O preto e branco é um farol que ilumina apenas
os grandes mestres da interpretação como este fabuloso Jean Dujardin,
protagonista do filme que vai do tom debochado e engraçado à paixão, amor e dor
de uma cena para a outra. O mesmo faz sua eletrizante parceira em cena,
Berenice Béjo.
E se os jovens querem uma ação vertiginosa – oferecida pelos
joguinhos e pelos vazios filmes blockbusters de aventura - O artista ainda
oferece o ritmo alucinante da rápida queda de uma grande estrela do cinema, o
George Valentim feito por Du Jardin, da fama ao esquecimento, solidão e pobreza
em pouco tempo.
E se os jovens querem diversão, ela está mais que garantida
por esse adorável e engraçadíssimo cãozinho que é o companheiro fiel do astro
do cinema na glória e no fracasso.
O problema é que nem ao cinema os adolescentes e muitos
jovens vão mais. Como bem escreveu na Folha de ontem o jornalista Marcelo
Coelho, ir ao cinema decresceu tanto na molecada que os professores agora
inventam passeios para o cinema para garantir um mínimo de formação cultural e
arte aos seus alunos. Coelho mostra que a ida ao cinema parece a velha ida ao
teatro com a escola. Ah, mas e o DVD e a tv a cabo? Preciso dizer que tipo de
filmes e canais a meninada assiste?
Graças aos raros pais que ainda mantém o saudável e belo
costume de levar os filhos ao cinema, guiando-os em filmes-caminhos
desconhecidos, em vez de apenas levá-los para ver o novo blockbuster que a
grande mídia tenta nos enfiar goela abaixo.
Graças aos professores que arrumam um tempinho e uma brecha
no conteúdo das apostilas para exibir um filme rico aos seus alunos. Obras que
eu denomino de “filmes de formação” por apresentarem e discutirem os mais
importantes fatos e valores de nosso mundo, de ontem e hoje.
Não viu ainda O artista? Dê uma chance à verdade do preto e
branco e descubra ainda como é possível se emocionar num filme mudo, no tipo de
filme que nos legou o talvez gênio maior da história do cinema, Charles
Chaplin.
Parabéns ao Oscar por valorizar não um filme ao estilo
antigo – como críticos superficiais insistem em classificá-lo – mas um filme
super atual, para quem defende uma vida mais bela, por resgatar a interpretação e poesia perdida pelos excessos dos
efeitos especiais mirabolantes.
Parabéns ao Oscar por valorizarem a perfeita definição do
cinema dada pelo cineasta Nicholas: “O cinema é a melodia do olhar”.
Mas como fazer os jovens olhares e se concentrarem num
simples olhar se são cada vez mais bombardeados por aparelhinhos, aplicativos,
softwares, joguinhos, fones de ouvido ultramega potentes (para delírio dos
médicos otorrinos...)?
Como resgatar a poesia sufocada pela fúria da velocidade,
barulho e alienação?
PS – Não se convenceu? Tente então dois outros filmes
primeiro, coloridos e falados... Em Os Descendentes, o destaque é a jovem Shailene Woodley que
faz a filha mais velha de George Clooney. Em seu primeiro papel no cinema,
a adolescente produz mais efeitos e eletricidade com seus pequenos, ligeiramente puxados e
ultraexpressivos olhos que todo o elenco reunido dos canais adolescentes que
infestam a tv a cabo. Da ternura à raiva, da rebeldia sem causa à atitude para
defender a honra de seu pai, ela é um soco na cara na apatia ou afetação de
jovens atorzinhos e atrizes sem o mínimo talento.
Já em O homem que roubou o jogo, Brad Pitt faz um dos mais
belos trabalhos de sua carreira como um homem que arrisca tudo por uma ideia
jamais tentada antes. Há uma cena dele acelerando o carro enquanto escuta uma
canção da filha que Pitt simplesmente condensa todos os sentimentos mais fortes
possíveis no ser humano em segundos. E detalhe: ele faz isso mal mostrando os olhos, apenas deixando cada
linha e ruga de seu rosto falar-explodir sem falar. Coisa de grande artista,
coisa do antigo bonitão que virou um grande, e a cena ainda conta com uma
fotografia deslumbrante, com pouca luz e sombras sendo incendiadas pela atuação
do marido de Angelina Jolie.
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