Se eu pudesse sintetizar toda a minha vida, entre ideais,
paixões, sonhos e pequenas realizações em uma única foto, esta seria a imagem.
Uma imagem, captada pelo fotógrafo Reginaldo Manente, ligada a um fato. Um fato que só poderia ter sido descrito dessa
forma – e foi – pelo jornal mais ousado e belo que conheci, o Jornal da Tarde.
Ou simplesmente JT para os íntimos. Somente o JT soube expressar toda a dor
genuína, profunda, dos brasileiros naquele 5 de julho de 1982 quando a mais
bela seleção brasileira de futebol da história perdeu da Itália em uma partida
tão maravilhosa quanto cruel. Estava ali nesse menino chorando também as
lágrimas e, mais do que isso, o desamparo do sonho desfeito, dos meninos que eu
era e dos homens feitos que também choraram feito meninos. Sonho desfeito, sim,
porque eram tempos em que os brasileiros amavam de verdade seus ídolos e
craques da bola. Porque seus heróis de camisa amarela e muito talento no pé –
Leandro, Junior, Falcão, Sócrates, Cerezzo, Zico, Éder e cia eram também
grandes seres humanos, quase todos eles dotados de um bom caráter inspirador e
pensamentos articulados, inteligentes. E esses heróis ainda eram guiados por um
mestre, Telê Santana.
O caso é que o JT parece que vai deixar de existir segundo boatos
que vazam cada vez com mais força de dentro do Grupo Estado, que dirige o jornal.
Como pode desaparecer um jornal que foi uma ideia e um
compromisso, lá nos anos 60 quando nasceu, com um jornalismo tão inteligente
quanto bem escrito e combativo? Como pode desaparecer um jornal que foi o
companheiro de quem sonhava com um Brasil melhor mostrando o melhor de nosso país?
Como pode morrer um jornal que, diferente de tantos outros que baseiam suas
páginas no pior do brasileiro, mostrou sempre o valor de nossa gente (e isso
sem deixar de atacar e descobrir muitas de nossas mazelas?) Como pode ir embora
o jornal que, mesmo sem ser um circo de horrores, foi o primeiro a perceber as
mentiras e falta de caráter de um certo Paulo Maluf, estampado naquela histórica
sequência de capas com o nariz crescendo a cada dia por conta das mentiras que
dizia sobre a Paulipetro, companhia petrolífera que torrou bilhões perfurando o
solo paulista sem achar uma única gota de petróleo? Como pode morrer um bastião
de cultura que nos ensinava tanto com aquele fantástico suplemento de cultura,
o Sábado?
Sim, o JT mudou muito ao longo das décadas, em especial a
partir do final do século XX, quando tentaram transformá-lo num jornal mais
popular e quase que exclusivamente paulistano. O suplemento de cultura, por
exemplo, foi assassinado. Mas o JT sempre teve uma essência tão boa, tão rara,
que mesmo essa tentativa dos donos de torna-lo popular e rasteiro não vingou,
porque seus jornalistas, mesmos os mais novos, eram e são amantes do bom texto,
da história valiosa, das analogias ricas, do jornalismo que não é o mero
jornalismo noticioso da maioria dos outros jornais. Não, Ivy Faria, Felipe
Machado, Julio Maria, Gilberto Amendola, Alessandro Lucchetti, Luiz Antonio
Prosperi, entre outros inúmeros nomes, que passaram recentemente por lá ou
ainda estão no jornal, nunca deixaram a bola e a qualidade cair. E olha que nem
falei dos gênios e grandes homens e mulheres que brilharam no JT mais antigo.
O desejo dos donos do Estadão de fechar o JT será uma enorme
mostra de incompetência da direção do grupo. Em um país com tantos jovens, por que
não ampliam o espírito sempre jovem, belo e combativo do JT? E não confundam
juventude com superficialidade e inexperiência, pois os jornalistas do JT,
mesmo quando jovens, sempre souberam destacar , por exemplo, nas famosas
entrevistas das 2as feiras, as personalidades mais importantes do país. Nesta
última segunda, por exemplo, estava lá uma certa Fernanda Montenegro...
O Grupo Estado deveria é recuperar a essência do JT, voltar
a valorizar mais a cultura, mergulhar mais fundo na cidade (não só São Paulo),
valorizar mais o bom texto, mais trabalhado como na grande reportagem e nos
belos “abres” das entrevistas (lead é coisa de medíocres, os bons jornalistas
do JT fizeram sempre é grandes aberturas!). “Ah, os computadores, tablets e
aplicativos de celular fazem o pessoal ler menos no papel”? Ora, por que os
chefões do Estadão não investiram então no site do JT? Por que sempre deixaram
o site do jornal abandonado, feio, incompleto e quase nada interativo e
multimídia? Por que sempre só deram atenção ao cada vez mais chato e
conservador Estadão?
Porque eles sempre quiseram matar o JT. Porque os
mandatários do Estadão de hoje parecem não ter coragem nem criatividade nem
ideais para recuperar o JT do passado.
Esta será uma das perdas irreparáveis para muitos
brasileiros.
De mim e muitos hoje quarentões e cinquentões, vocês vão
tirar parte da infância, parte enorme dos sonhos de futebol, esporte, cidadania
e cultura que o JT nos ensinou. Parte de nossa indignação com políticos
corruptos como Maluf que seguem soltos.
O JT, tanto quanto um inesquecível professor de escola, o
Chico Moura, me ensinou a escrever. Mais que isso, me ensinou a pensar e também
a prezar as belas e profundas palavras. Ajudou demais na minha formação. Ajudou
a me formar como sonhador, lutador, cidadão, professor, jornalista e escritor.
Estão matando não um jornal, mas um ideal e uma escola de
vida e brasilidade.
Que os grandes jornalistas e, mais que isso, grandes
espíritos, cabeças e corações que escreveram e escrevem no JT consigam deter
esse processo. Ou recriem, em outro lugar, com outro nome mas com a mesma
essência, um dos mais importantes jornais que esse país já teve.
Que outro jornal brasileiro conseguiu traduzir em uma única
capa uma vida toda como a capa do menino chorando em 1982? O quê da vida foi revelada naquela capa? A capacidade de
sonhar, se apaixonar, amar, vibrar, celebrar, sofrer e perder com a fantástica
seleção de 82. Aquela era uma época rara em que nossos jogadores representavam
o melhor dos brasileiros naquele jeito de jogar que era uma música tão alegre
quanto bela e contagiante; e naquele jeito de ser, pensar e falar profundo de
quando um Sócrates, Zico ou Telê abria a boca. E essa capa também foi
profética, porque a dor do menino, a dor de todos nós que vivemos aquela
partida, prenunciava a tristeza e falta de alegria que as seleções do futuro
nos trariam.
Tomara que em algum canto desse Brasil que tem hoje tantas
pessoas notáveis e inspiradoras como os nosso craques da bola e da vida de 82,
algum grande grupo de jornalistas, cidadãos e empresários que não pensem
somente em lucros imediatos tenham a coragem de reinventar o JT. “Ah, mas o JT
só cair em circulação, cada vez mais vende menos”, devem dizer os frios
empresários que comandam o Grupo Estado. Mas claro, vocês desprezaram o JT por
décadas, a culpa é de vocês, que foram obrigando o jornal a minguar e se
esvaziar. Por que, por exemplo, não deram ao JT o mesmo cuidado e tempo que
deram a essa brilhante rádio Estadão ESPN ou a rádio Eldorado, ambas do mesmo
grupo de vocês? Por que não viabilizaram e pensaram em parcerias para o JT? Por
que não modernizaram de fato, em vez de apenas enxugar, o jornal?
Porque vocês não tiveram cuidado com o jornal que foi a
minha vida, e de tantos outros paulistanos e brasileiros. E, sim, aqui admito
que o jornal sempre teve uma essência paulistana, mas até aqui a incompetência
e desleixo de vocês é grave: como é que pode a cidade mais rica do país perder
o seu jornal-símbolo? E não me venham falar que ficará o Estadão, pois o
jornalão para mim é muito mais um órgão voltado a Brasília que para São Paulo.
E isso, vocês podem ter certeza: quem assina o JT não assinará o Estadão. Sei
que muitos jornalistas navegam entre os dois jornais (na verdade, me parece que
o Estadão roubava os melhores nomes do JT), mas será fácil continuar lendo
esses: irei numa padaria e procurarei a única parte do Estadão que tem um
pouco, na verdade, um pouquinho só do espírito do JT: o Caderno 2. Em especial,
da edição de sábado. Mas só queria saber onde é que vocês vão enfiar o
brilhante pessoal do caderno de esportes, este sim o pedaço que ainda mantém a
alma do JT dos anos 60.
Façam alguma coisa, leitores e jornalistas do JT, não deixem
o nosso jornal (mais que isso) morrer.
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