Ainda
hoje aquele pôster - amassado, rasgado e envelhecido pelo tempo - está
pendurado no velho quarto de um garoto que virou quarentão mas não o esqueceu.
Nele vemos um raro caso de guerreiro elegante. A camisa está manchada de terra,
na verdade enobrecida da terra e do chão do qual ele não tinha medo. O chão no
qual ele se atirava numa jogada típica, o carrinho que dava para recuperar a
bola nas laterais do campo, lugares que ele sabia que resultariam em
contra-ataques mortais. Este era o lado guerreiro, de quem dividia sem medo e
enfrentava no peito os mais duros marcadores rivais, em qualquer pedaço do
campo. Havia também a elegância, o porte altivo, corpo e mente ereta, de quem
jogava o fino e com inteligência, com toques refinados, passes precisos e
solidários, chutes tão violentos quanto precisos, e cabeçadas que eram tiros de
canhão. Até hoje, 20 anos depois, Raí segue dependurado na parede da velha casa
dos meus pais e não cai. Porque aquele São Paulo era derrubador, brigador,
vencedor. Conquistador da primeira Libertadores tricolor. A até hoje talvez
mais bela taça que conquistamos, por seu significado e dificuldade.
Eram
105 mil são-paulinos no Morumbi lotado e duvido desse número, pois passei o
jogo todo espremido em um dos últimos lances da arquibancada, o que fez muito
jornalista falar em pelo menos 120 mil torcedores naquela noite. A mãe de todas
as noites gloriosas do São Paulo de Raí, outros fantásticos jogadores e, claro,
mestre Telê. Resgatando hoje a escalação, o esquadrão é monumental: O
seguríssimo e heroico Zétti (e ainda um ser humano sensacional), o multihomem
em campo, Cafu, o clássico e raçudo Antonio Carlos, a muralha Ronaldão e o
vigoroso mas inconstante Ivan (não naquela final), típico caso de jogador que
só brilhava e arrebentava sob o comando e orientação de mestre Telê. No
meio-campo, o cão de guarda mas bom no primeiro ou segundo passe (diferente dos
meros brucutus de hoje) e uma das almas do time, o sempre enlouquecidamente mais
que raçudo, Pintado. Ao seu lado na proteção da zaga e início dos
contra-ataques infernais tricolores, o clássico e nobre zagueiro central,
deslocado por Telê, Adílson, quase um líbero, pois Telê era, sim, bom em tática
também, como não acreditavam seus críticos. Um pouco mais à frente, capitão,
líder e matador Raí comandando as ações ofensivas com o homem de papel, fluído,
quase etéreo, mas ilusionista, rapidíssimo e inteligente nos toques rápidos, além
de goleador, Palhinha. Já no ataque, mas volta e meia recuando um pouco para
armarem tabelinhas sensacionais, o genial Müller, tão flecha quanto arco de boa
parte dos gols tricolores. Junto dele, do outro lado, o veloz e não tão
inteligente Elivélton, mas hábil e de chute forte. E se Müller, coisa rara, não
estava bem, houve o amalucado mas habilidoso e supersônico Macedo no banco para
entrar e sofrer o pênalti que nos daria a vitória necessária para levarmos o
jogo aos pênaltis.
Pênalti
que Raí encarou com a frieza de valente dos valentes, caixa, 1 a 0 igual ao
placar da derrota na Argentina contra esse lutador Newell´s Old Boys comandando
por um certo Marcelo Bielsa...
Veio
então a decisão por pênaltis e aí brilhou não só o heroísmo e técnica de Zétti
mas um dos diferenciais daquele São Paulo de outros tempos: o trabalho bem
feito nos bastidores e preparação da equipe. Zétti sabia para onde pular porque
seu treinador, e observador de todos os adversários do time naquela
Libertadores, já tinha mapeado a cobrança dos jogadores do Newell´s. Falo de
Valdir de Moraes, ele mesmo, aquele que
depois ainda formaria um certo Marcos no rival alviverde. E ainda havia na
comissão técnica tricolor Moraci Santana e Turíbio de Barros, comandantes de
toda a preparação física e fisiológica dos jogadores naquela Libertadores.
Falta
ainda o Mestre Telê Santana. E o que eu posso dizer de um treinador que montou um time
sensacional desse, como mostra a escalação? O que dizer de um treinador que baseou
seu time em pegada, sim (Ronaldão e Pintado na chefia do jogo duro mas na bola),
mas também nas maravilhosas tabelinhas entre Raí, Palhinha, Müller e Elivélton?
O que dizer de um treinador que morava no CT do São Paulo e investigava todos os
dias os gramados para quem nenhum buraco machucasse seus atletas ou prejudicasse
o toque de bola conduzido por Raí e cia? O que dizer de um mestre sem frescuras
e vaidades, que só se importava em treinar e treinar, bem diferente dos
treinadores pop stars que infestariam o futebol brasileiro e mundial em pouco
tempo? O que dizer de um perfeccionista e raro treinador formador de jogadores
completos, que exigia a repetição dos fundamentos básicos do passe, cruzamento,
tabela e chutes? O que dizer de um mestre amado para sempre, até hoje cantado
com saudade no seu templo e imensa sala de aula do Morumbi?
Bonita ontem (antes da pelada de mau gosto contra o
Atlético...), a homenagem aos homens e heróis que começaram duas décadas atrás
o sonho de nos tornarmos o melhor time do mundo. Só não concordei com os
jogadores de hoje estamparem em suas camisas os nomes dos nossos heróis.
Nunca
vi, por exemplo, o Maestro Raí maltratar a bola, não dar o sangue ou reclamar de uma marcação do árbitro... Nunca vi
o maior jogador de nossa história nos deixar na mão.
Raí só
nos deixava nas nuvens. No topo do mundo.
* Textinho do Maestro sobre a Libertadores de 1992 aqui
Nenhum comentário:
Postar um comentário